28 de junho de 1969, Stonewall Inn, Estados Unidos. Este é o ponto de viragem na história da comunidade LGBTQIAP+. Durante a madrugada, gays, lésbicas, pessoas transgénero, travestis e drag queens entram em confronto com a polícia e dão início a uma rebelião que viria a estabelecer os alicerces do movimento pelos direitos LGBTQIAP+ nos Estados Unidos e em todo o mundo. O episódio, que ficou conhecido como Rebelião de Stonewall ou Stonewall Riot, e que é considerado o marco zero do movimento, durou seis dias e surgiu como resposta à violência gratuita e rotineira infligida pela polícia nos bares gay de Nova Iorque.
Desde então, o Dia Internacional do Orgulho LGBT, celebrado anualmente a 28 de junho, é o símbolo da coragem e resistência daqueles que participaram na manifestação, mas é também altura para (re)lembrar que ainda existe um longo caminho a percorrer na luta contra a discriminação, a violência e a desigualdade.
Há 33 anos, a 17 de maio de 1990, a Organização Mundial de Saúde retirava a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças. Ser homossexual deixou de ser considerado transtorno mental. Desde 2005 que, neste mesmo dia, passou a comemorar-se o Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia.
A realidade portuguesa
Em Portugal, a homossexualidade e a diversidade de género foram frequentemente reprimidas e marginalizadas. Durante o Estado Novo, regime ditatorial que vigorou de 1933 a 1974, a homossexualidade era ilegal e considerada uma ofensa à moral pública. Essa repressão criou um ambiente hostil para a comunidade LGBTQIAP+, resultando em discriminação, ostracismo e violência.
“Ao longo de uma história de ativismo já com várias décadas, muito dificilmente se poderia falar de um momento único, mas antes de um conjunto de marcos socioculturais, jurídicos e políticos que foram dando forma ao movimento, permitindo-lhe dar resposta a novos desafios. Neste sentido, a transição para a Democracia após a mais longa ditadura da Europa Ocidental foi o evento político de maior relevo para qualquer movimento social em Portugal e que permitiu que outros marcos fundamentais tivessem lugar no campo específico da ação coletiva LGBTQIAP+”, começa por explicar Ana Cristina Santos, investigadora principal em Estudos de Género no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Mesmo com a queda deste regime, só em 1982 se dá a descriminalização da homossexualidade no nosso país. Assim, de acordo com o Código Penal, a homossexualidade “entre adultos, livremente exercida e em recato”, deixou de ser punível por lei. No entanto, só 13 anos depois, em 1995, é que se verifica uma real mudança. Este foi o ano em que que se celebrou a Rebelião de Stonewall pela primeira vez em Portugal, uma iniciativa levada a cabo pelo Grupo de Trabalho Homossexual, um coletivo associado ao Partido Socialista Revolucionário. Além disso, é também em 1995 que nasceu a ILGA-Portugal, a “maior e mais antiga associação que luta pela igualdade e contra a discriminação”, que se tornou uma voz ativa na defesa dos direitos desta comunidade.
No ano seguinte, é criado o primeiro site para a comunidade LGBTQIAP+ em Portugal, o portugalgay.pt. A socióloga destaca ainda o “primeiro Arraial Pride organizado em espaço aberto, a primeira edição do então Festival de Cinema Gay e Lésbico, a primeira Marcha do Orgulho e, já nos anos 2000, o Fórum Social Português que agregou muitos coletivos e permitiu criar pontes e sinergias como jamais sucedera até então”.
A morte de Gisberta
É já na segunda metade da década de 2000, mais precisamente em 22 de fevereiro de 2006, que acontece o assassinato de Gisberta, mulher trans e sem-abrigo. Foi torturada até à morte por um grupo de menores que acabou por ser condenado a penas entre os 11 e 13 meses por “maus-tratos”. Este é um momento que atua como catalisador do ativismo trans. Não era apenas uma mulher trans, mas também “alguém que tinha tudo contra si. Pessoa totalmente vulnerável, em situação de sem-abrigo, de nacionalidade brasileira, trabalhadora sexual”, aponta Sara Malcato, psicóloga da ILGA.
Ana Cristina Santos destaca que este episódio “constituiu a maior tragédia que, de uma forma pública e muito mediática, afetou a comunidade LGBTQIAP+, com particular relevo para as pessoas trans (incluindo aqui as pessoas que se identificam como transsexuais e/ou transgénero)”.
A morte de Gisberta não foi em vão. Gerou-se uma onda de indignação e revolta tanto a nível nacional como a nível internacional. “Trouxe para o centro da reflexão a vulnerabilidade das vivências trans, com elevado grau de precariedade laboral, pobreza e transfobia”, sublinha a investigadora. “Revoltou as pessoas, nomeadamente as pessoas LGBTQIAP+, que se reviram naquilo e perceberam que ‘a próxima posso ser eu e não vou ter proteção social ou legal’”, enfatiza a psicóloga.
Além disso, “teve consequências sociais e jurídicas de relevo, como o aparecimento de coletivos e associações trans, a realização da Primeira Marcha do Orgulho do Porto e o agravamento das penas de crimes por ódio sexual”, destaca Ana Cristina Santos que, porém, lamenta não se ter ido mais além. “Esse momento de consternação acabou por se diluir, sem se ter traduzido noutras medidas a médio e longo prazo que permitissem maior qualidade de vida às pessoas trans”.
Os avanços históricos em Portugal
Em 2010, Portugal fez história ao tornar-se um dos primeiros países do mundo a aprovar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Três anos depois, em 2013, outro importante marco: a lei da coadoção, que permitiu que casais homossexuais coadotassem filhos adotivos ou biológicos dos parceiros.
Já em 2015, foi aprovada a adoção por casais homossexuais, que garantiu que casais LGBTQIAP+ tivessem os mesmos direitos e oportunidades de formar famílias que casais heterossexuais. Finalmente, a mais recente vitória aconteceu em 2021: a eliminação da discriminação na doação de sangue, medida que colocou um ponto final a uma política discriminatória que impedia que homens gays e bissexuais fizessem doações de sangue.
O papel da Escola
Apesar dos inegáveis avanços, continuam a existir desafios no caminho da igualdade LGBTQIAP+ em Portugal. Prova disso mesmo é a saída do país do top-10 no ranking da ILGA Europa sobre os direitos desta comunidade, que tem em conta parâmetros como as leis do país e a segurança. “Revela que estamos estagnados. Não é que estejamos a criar leis punitivas, só que há países que, de facto, têm leis mais inovadoras e que já têm conseguido alcançar metas que Portugal ainda não alcançou, nomeadamente no que toca à saúde das pessoas LGBTQIAP+, principalmente as pessoas trans”, explica Sara Malcato.
A discriminação, a violência e o estigma ainda se fazem (e muito) sentir. O ativismo e a mobilização são fundamentais para enfrentar esses desafios, garantindo que os direitos desta comunidade são protegidos em todas as esferas da sociedade. E a Escola tem um papel fundamental para que as pessoas LGBTQIAP+ sejam verdadeiramente incluídas na sociedade.
“Sem a Escola nunca vai existir verdadeira inclusão”, aponta. No entanto, apesar de existir uma lei da educação para sexualidade desde 2009, a verdade é “que o que há – quando é – é falar de prevenção de gravidezes não desejadas e DST’s”, lamenta.
“O problema não são as crianças, são os adultos”, considera. “Há um medo muito grande de alguns adultos – que não tiveram educação sexual nas escolas – de acharem que se falam sobre sexo, os adolescentes vão começar a fazer sexo desenfreado. Aquilo que a investigação nos tem demonstrado é exatamente o oposto. Quanto mais informação temos, melhores escolhas fazemos”, esclarece. Nesse sentido, realça a importância de continuar a “adotar legislação que criminalize práticas como a homofobia, a transfobia, biofobia”, foca. “Não temos uma lei clara que criminaliza a homofobia, só temos contra o discurso de ódio”, assinala.
O fim das ‘terapias’ de conversão
Ana Cristina Santos começa por destacar o caráter de urgência no que toca à “proibição definitiva das chamadas ‘terapias’ de conversão”, uma reivindicação que deverá ser “finalmente obtida a breve trecho”, espera.
Acrescenta que “falta ainda garantir um conjunto de medidas de caráter interseccional, ou seja, medidas dirigidas a pessoas LGBTQIAP+ racializadas, migrantes, presidiárias, com deficiência ou doença crónica e/ou no envelhecimento. Não podemos continuar a projetar um modelo de tipo one size fits all: é preciso reconhecer e acolher as especificidades, procurando ajustar e enquadrar numa lógica de respeito pela dignidade e promoção dos direitos humanos”.
Além disso, defende que para além das mudanças na legislação, é necessário criar ou reforçar mecanismos que assegurem a aplicação das mesmas. “Há um forte défice de medidas de acompanhamento e monitorização que garantam a efetiva aplicação de leis aprovadas”, enfatiza.
Sara Malcato recorda ainda que individualmente há também um papel a desempenhar. “Cada um de nós é parte da sociedade”, explica. “Quando ouvirmos uma piada que tem o intuito de humilhar um grupo de pessoas não nos rirmos ou quando virmos um comportamento que não é o mais adequado, devemos intervir”, frisa.
Uma nova ameaça
Após um período marcado por importantes conquistas tanto a nível social, como a nível jurídico na proteção das pessoas LGBTQIAP+ contra discriminação, desigualdade e violência, a verdade é que os “movimentos populistas anti-género e de extrema-direita que procuram desacreditar e reverter os avanços obtidos, fazendo incidir a sua crítica mais feroz no trabalho de proteção a crianças e jovens LGBTQIAP+ e/ou de género diverso” têm ganho força um pouco por toda a Europa e Portugal não é exceção, sublinha Ana Cristina Santos.
“Disso mesmo damos conta no projeto Infância Arco-Íris que desenvolvemos no Centro de Estudos Sociais (CES-UC) com financiamento da Comissão Europeia e em parceria com outras universidades e entidades a nível europeu”, adianta.
No entanto, não são só estas faixas etárias mais jovens que são afetadas. “Também nos projetos REMEMBER e TRACE – ambos sobre envelhecimento e diversidade sexual e de género – percebemos junto das pessoas entrevistadas que o crescimento da extrema-direita constitui o maior medo que pessoas LGBTQIAP+ acima dos 60 anos enfrentam quando pensam no seu futuro. Este é um dado particularmente triste quando percebemos que estas são as mesmas pessoas que, durante a sua infância e juventude, viveram no armário justamente como consequência de uma ditadura que perseguia e punia a homossexualidade com penas até dois anos de prisão. Assistir ao ressurgimento deste medo na reta final das suas vidas é perturbador”, conclui a investigadora.