No projecto de lei submetido à aprovação da Assembleia da República, os sociais-democratas afirmam que é preciso actualizar a designação da entidade responsável por discernir entre consumo e tráfico. Em vez do Conselho Superior de Medicina Legal, um órgão consultivo extinto em 2000, o PSD propõe que o diploma que revê a legislação de combate às drogas substitua este organismo pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), a autoridade competente para tal.
Longe da vista, longe do coração
Segundo o documento, esta actualização do regime jurídico visa delinear “os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das catorze substâncias de consumo mais frequente em 1996: heroína, metadona, morfina, ópio, cocaína, canábis (folhas e sumidades florias ou frutificadas, resina e óleo), fenciclidina, lisergida, MDMA, anfetamina e tetraidrocanabinol”. Para o INMLCF, a actualização deve ser feita com base em dados sobre a composição das drogas, como são consumidas e com que frequência, além de informações sobre os danos à saúde que elas podem causar. “Apenas desta forma a lista de substâncias reflectirá as tendências actuais baseadas nos diversos indicadores de consumos de drogas, orientando as entidades envolvidas para os procedimentos analíticos com carácter pericial, necessários à verificação dos limites quantitativos máximos previstos na tabela”, lê-se no parecer da INMLCF.
O diploma que o PSD pretende alterar já sofreu, até à presente data, trinta alterações “quer no seu articulado, quer nas respectivas tabelas, devido, essencialmente, ao constante aparecimento de novas substâncias e ao consequente cumprimento das obrigações decorrentes da assinatura da Convenção das Nações Unidas sobre o tráfico ilícito e consumo de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”. Ou seja, a legislação portuguesa não acompanhou os avanços científicos e continua a aplicar uma disposição jurídica desactualizada.
Cumpre destacar que desde Novembro de 2001, a posse e o consumo de drogas não são considerados crimes em Portugal. De acordo com o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), “o consumo foi descriminalizado, mas não despenalizado”. Isso significa que o acto continua a ser um acto punível por lei, mas deixou de ser um “comportamento alvo de processo-crime”, tratado nos tribunais. “Esta mudança na legislação portuguesa, vulgarmente chamada lei da descriminalização do consumo, alterou a forma como se olha para um consumidor de drogas, deixando de lado o preconceito que o comparava a um criminoso, passando a considerá-lo como uma pessoa que necessita de ajuda e apoio especializado”, refere a SICAD. No entanto, o disposto não se aplica às drogas sintéticas, mais conhecidas como novas substâncias psicoactivas (NSP). “A portaria suprarreferida mantém-se inalterável desde a sua publicação, não se ajustando às novas realidades, o que cria inclusivamente uma desigualdade injustificada e discriminatória entre os consumidores das ditas drogas «clássicas» e os consumidores de drogas sintéticas, pois enquanto aqueles se encontram protegidos enquanto consumidores, estes não, precisamente porque no mapa dos quantitativos máximos para cada dose média individual diária não consta nenhuma das NSP, mas apenas substâncias que correspondem às ditas drogas “clássicas”, escreve o grupo parlamentar do PSD. A TejoMag contactou as organizações SICAD, CAT e CRESCER com o intuito de obter esclarecimentos adicionais, porém, não foi possível obter uma resposta.
Madeira é mais afectada
Em conversa com o jornal PÚBLICO, a deputada Sara Madruga da Costa, do PSD, eleita pela Madeira, diz que esta iniciativa serve “para proteger os consumidores e apertar a malha aos traficantes”. E é na Madeira que a situação é especialmente preocupante. Consoante o documento apresentado pelo PSD, “o consumo das NSP tem sido objecto de uma luta incessante por parte dos Governos Regionais da Madeira e dos Açores, tendo sido aprovada pela Região Autónoma da Madeira (RAM) em 2012 legislação do foro contraordenacional sobre as mesmas”.
Segundo a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira (ALRAM), as NSP “são frequentemente referidas em Portugal como «drogas legais» “. Isto ocorre porque estas drogas não estão inscritas nas tabelas anexas à lei de combate ao tráfico de droga. Para todos os efeitos, não são consideradas substâncias proibidas. De uma forma geral, “possuem características comuns às drogas abrangidas pela lei vigente e são constituídas por compostos obtidos por síntese química ou por partes, ou extractos de plantas, ou de fungos, destinando-se a provocar uma resposta psicoactiva, estimulante, sedativa ou alucinogénica”.
De acordo com um decreto legislativo regional, o objectivo era implementar “um regime de ilícito de mera ordenação social para assegurar a protecção dos cidadãos” e para reduzir a oferta dessas “drogas legais”. “O regime ora criado representa uma medida de carácter administrativo, com o objectivo de proibir a disponibilização de novas drogas não integradas nas tabelas previstas no referido Decreto-lei n.º15/93 de 22 de Janeiro de 1993, mas que constam das listas de novas substâncias psicoactivas publicadas anualmente pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT)”, lê-se.
Este ano, a ALRAM apresentou à Assembleia da República uma proposta com o objectivo de “incutir uma maior celeridade na criminalização e inclusão de novas substâncias psicoactivas (NSP) na Lei do Combate à Droga (impondo um prazo de seis meses para a sua inclusão após identificação”. Tanto a iniciativa do PSD, como a da ALRAM foram admitidas pela Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (CACDLG) em Fevereiro deste ano. Quanto ao projecto de lei do PSD, a CACDLG assegura que “a presente iniciativa legislativa cumpre os requisitos constitucionais, legais e regimentais para ser apreciada em plenário na Assembleia da República”. Apesar deste parecer, o Partido Socialista ainda não sabe se vai aprovar. Questionada pela TejoMag, a deputada Isabel Moreira, responsável por estas matérias, adiou uma posição oficial. A TejoMag contactou todos os grupos parlamentares, mas até à hora de fecho desta edição, não recebeu qualquer resposta. Ao que tudo indica, é expectável que o Partido Comunista Português (PCP) acompanhe a iniciativa. Em 2000, o Partido Comunista Português (PCP) foi mais longe e propôs “a exclusão absoluta de penas de prisão por consumo de drogas”. Segundo foi possível apurar, a proposta de lei foi recusada com os votos contra do PS (embora alguns deputados tenham votado favoravelmente), do PSD e do CDS.
Em Espanha, por exemplo, as tabelas anexas ao decreto real que regula e fiscaliza essas substâncias são actualizadas regularmente, incorporando aquelas sujeitas a medidas de controlo internacional. Trocado por miúdos, o nosso vizinho adoptou uma postura de controlo e regulamentação das drogas sintéticas, visando prevenir o tráfico e o consumo ilícito. O mesmo se passa na República da Irlanda, onde a lista das substâncias controladas está prevista no Misuse of Drugs Act de 1997. Com uma excepção: a revisão das substâncias a serem incluídas nessa lista é feita pelo governo, não havendo uma obrigação específica de revisão periódica. Em Itália e em França, essa tarefa está a cargo do Ministério da Saúde e tem o mesmo propósito. Em suma, estes quatro países assumiram a posição de controlar e regulamentar as drogas sintéticas, seja por meio da actualização de listas, classificação de substâncias ou acções de prevenção e intervenção.
“Apesar de todos estes esforços, esta luta está longe de chegar ao fim e envolve esforços a vários níveis, dada a percepção pública e os elementos que dão conta de um aumento da comercialização das referidas substâncias, e do consequente aumento do seu consumo e inerentes admissões hospitalares e internamentos psiquiátricos”, conclui o PSD.
NOTA – Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.