São 8h30 da tarde, o céu está cinzento e as ruas encontram-se molhadas pela breve chuva torrencial, que horas antes atingiu a área da grande Lisboa. O estado do tempo esvaziou o espaço afastando os clientes. Desta vez, Lena, como é chamada por todos os que a conhecem, inclusive no restaurante onde trabalha, teve a sorte de arrumar as mesas e os chapéus de sol da esplanada antes da tempestade aparecer.
Helena Rogério sai do restaurante e acende um cigarro que vai fumando até à paragem do autocarro. Tem 56 anos, 32 dos quais passados atrás daquele balcão, a servir cafés e a atender pedidos às mesas, perto de uma das zonas mais ricas e luxuosas de Lisboa. O mês de maio está a terminar e o calor do verão já se faz sentir. A esplanada encher-se-á de gente e de pedidos para aviar, os dias ficarão mais longos e a sua chegada a casa cada vez mais tardia.
A caminho da paragem de autocarro, a poucos metros de distância do seu local de trabalho, Lena deixa transparecer o seu duro quotidiano. Mal conseguindo levantar os pés do chão, com passos pesados, chega à beira da estrada que tem duas faixas para cada sentido. Numa atitude descuidada atravessa-a, parando a meio, para deixar os carros passar. Mais dez minutos ou um quarto de hora e o autocarro chega levando-a até à estação de comboios. Nos dias de semana está mais conversadora, mas aos sábados, o último dia de trabalho antes da sua única folga semanal, desliga da realidade. Todas as tarefas são feitas de modo quase automático, mal conseguindo responder a quem a interpela, tal é o cansaço físico e psicológico.
As jornadas de 15 horas
À revelia da lei, no restaurante não há pica-ponto. Se houvesse, a sua história, em parte, poderia ser diferente. Entraria às 11h da manhã e sairia às 20h, como consta na sua folha. Atualmente dá por terminado o trabalho 30 minutos ou uma hora depois. No total um dia de serviço pode durar 13 horas seguidas, tendo sido a sua entrada fixa pelo patrão às oito horas da manhã. Segundo o Código de Trabalho, é permitido que faça oito horas diárias. Se fizer mais, terá de ser compensada com redução de horário nos dias seguintes ou com dias de descanso. O que nunca ocorre.
O estabelecimento já mudou de gerência seis vezes, mantendo sempre a essência inicial. Um amplo espaço com 52 lugares, um comprido balcão com uma vitrine com vários bolos e salgados e um espaço ao ar livre. Os menus do almoço tipicamente portugueses. Foi há quase duas décadas que António comprou a casa e decidiu manter Lena como empregada. Nos anos iniciais a carga horária era normal, como sempre foi com os patrões anteriores. Mas em plena crise de 2008, começou a fazer dois turnos. Trabalhava das 7 horas da manhã às 10 horas da noite, com direito a uma pausa de uma hora e meia. Cumpriu essas 15 horas até 2011 quando exigiu ter um horário normal.
Nessa época estava em processo de divórcio e a luta pela guarda do filho fê-la tomar a decisão de ameaçar o patrão. “Antes de ir a tribunal disse-lhe que ia fazer queixa dele se não reduzisse o horário”. António reduziu o seu horário para 11 horas diárias para que pudesse ter tempo de ficar com o filho, na altura com 11 anos. De nada adiantou. O tribunal decidiu atribuir a tutela do menor à avó materna, argumentando a falta de disponibilidade de Lena. Passou a vê-lo apenas sábado à noite quando o ia buscar e domingo à tarde tinha de o deixar na casa da sua mãe. “A partir dessa idade em diante perdi muita coisa. Houve muitos momentos que a minha mãe acompanhou e eu não. Quando estava com as outras gerências tinha tempo para acompanhar o meu filho porque tinha um horário decente”, diz com um ar abalado. “Foi o pior que me aconteceu enquanto ali estive”.
A par desse episódio, Lena culpa o patrão do rumo que o seu casamento levou. “O meu ex-marido ainda hoje diz que se eu tivesse uma vida normal, se calhar as coisas não teriam corrido como correram”. Até há três anos continuou a cumprir esse número de horas, até o ver a aumentar novamente. Pela altura do verão, em agosto, como os restantes restaurantes e cafés da zona encerram para férias, foi-lhe pedido que ajudasse na abertura e no fecho. “Eu comecei por ajudar e depois continuei porque ele achava que era uma obrigação”, diz encolhendo os ombros.
“Quando eu falava com o patrão, ele dizia que se eu não estava bem que me mudasse”. Mas Lena não desistiu. Decidiu permanecer no restaurante, insistindo para que as suas reivindicações fossem atendidas. Um envelope com 100 euros, entregue no final do mês à parte do ordenado, para pagar as horas extra, foi o que conseguiu. “Ele diz que os 100 euros que me dá a mais, pagam as horas extraordinárias que faço. Por mais horas que faça, acha que não há movimento que justifique um pagamento maior”.
“Os calos, as fissuras, a pele enrugada e seca são outro sinal da dureza do seu trabalho.” / DIANA CORREIA CARDOSO
“Dá a entender que não sou capaz”
No percurso de autocarro até à estação, onde apanha o comboio em direção à Margem Sul, vai de pé, misturada com muitos outros trabalhadores e estudantes, que preenchem o estreito corredor. Segura-se a uma das instáveis pegas do veículo com uma mão e com a outra carrega uma pequena mochila. Os calos, as fissuras, a pele enrugada e seca são outro sinal da dureza do seu trabalho. As costas, visivelmente curvadas, dão-lhe um ar pesado que contrasta com a sua personalidade.
Atender ao público foi o principal motivo, que a levou, com 23 anos, a trocar o trabalho num escritório por um lugar atrás do balcão. Os clientes do restaurante são na sua maioria moradores do bairro, trabalhadores da zona de escritórios ou pedreiros. Todos a conhecem pela sua simpatia e humanidade. São eles, também, testemunhas do seu dia-a-dia no estabelecimento. O patrão foi despedindo trabalhadores, utilizando sempre a desculpa da crise. Hoje, é ela que, sozinha, faz serviço de mesa, avia os pedidos de almoços e atende ao balcão.
Enquanto serve um cliente, recolhe da mesa ao lado, as chávenas, os pires e os copos que transporta somente com as mãos, sem tabuleiro. Chega ao balcão e coloca-os na máquina de lavar. As pessoas vão-se acumulando de pé e enquanto os atende, chegam mais clientes à esplanada. A estas tarefas à hora de almoço, somam-se os pedidos que comunica na cozinha e que serve quando estão prontos. Às vezes, numa das únicas pausas que tem, a de almoço, de 30 minutos, nem termina a refeição porque não está ninguém para atender ao balcão e o patrão a obriga a levantar-se. Ao final do dia limpa o chão do restaurante, levantando uma a uma as mesas pesadas do interior e recolhe as da esplanada. Aos sábados, a cozinheira fica de folga e a ajudante de cozinha, faz o seu trabalho. Nos dias em que falta, é Lena que tem de fazer todo o trabalho de limpeza da cozinha, mantendo sempre um olho no balcão, nas mesas e na esplanada caso chegue algum cliente.
Para si, a situação “não é normal”, diz. “Uma pessoa quando está nas mesas tem de fazer também a esplanada e quem está ao balcão tem de dar serviço para fora e tirar cafés. Eu faço o balcão, a esplanada e as mesas. Eu consigo porque sei coordenar bem as coisas. Alguém com pouca experiência não conseguiria”. Lena relembra que todas as gerências anteriores trabalhavam a seu lado. Ela ficava ao balcão e eles no serviço de mesa. António tem um perfil diferente.
No outro dia, perto da hora de fecho do restaurante, quando estava no vestiário a trocar de roupa, o patrão chamou-a. Foi obrigada a sair, ainda de camisa interior, para receber um copo de uma cliente que estava na esplanada e se levantou para o entregar ao balcão. Nesse preciso momento, António estava perto da caixa registadora, optando por não atender o pedido.
As suas ordens são sempre expressas por gritos e insultos, explica Lena. “Ele maltrata-nos à frente dos clientes. Ralha por coisas sem motivo, repreende as pessoas sem motivo. Estamos a fazer o nosso trabalho e para ele está sempre tudo errado, mesmo que esteja certo”. Apesar da cozinheira e da ajudante de cozinha não escaparem às ofensas, ela é o principal alvo. “Diz que somos todos uma cambada de gente que não presta, que tem empregados que não valem nada” e principalmente “dá a entender que não sou capaz”.
A vítima e o vilão
Ao chegar à plataforma da estação fica a aguardar pelo comboio das 9h07. Pouco tempo depois uma senhora baixa e magra acena-lhe. É a sua vizinha, que há poucos meses começou a dar-lhe boleia para casa, evitando que, ao chegar à outra margem, tenha de esperar pelo autocarro que a deixa à porta de casa. Nas conversas diárias não consegue deixar de falar do seu dia de trabalho, relembrando antigas empregadas que trabalharam consigo.
A última estava sem contrato e despediu-se porque António não lhe pagou a quantia devida ao final do mês. Era uma jovem acabada de entrar na universidade. A penúltima também estudante, tomou a mesma decisão, devido à quantidade de insultos e pressão que sofreu. Saiu sem que lhe fosse pago o subsídio de férias e a última semana de trabalho. Não lhes era permitido que uma única mesa estivesse por levantar, mesmo que a fila de clientes para atender fosse longa. “Não aguentam a pressão. Nem estão para aguentar os insultos”, observa Lena.
Em declarações à TejoMag, Paulo Amado, fundador do projeto Nós as Pessoas, diz ser da mesma opinião. “Há uma nova geração que não permite isso”. Refere-se a “uma história interminável, uma tradição estranha de organização das cozinhas que nos dias de hoje é impossível de tolerar”. Em 2020, o projeto nasce disponibilizando consultas de psicologia gratuitas a trabalhadores do setor, com o objetivo de quebrar o “interminável ciclo da vítima-vilão”. Este ciclo inicia-se com a existência de um vilão, que está numa posição hierárquica superior, é “o responsável máximo” e com uma vítima que não tem poder. O vilão só o é porque antes já foi vítima. “À medida que [as vítimas] fossem subindo na carreira, transformavam-se em vilões para fazer novas vítimas”, conclui.
“O caminho de casa faz-se longo, apesar da companhia. No total dura uma hora e meia.” / DIANA CORREIA CARDOSO
António enquadra-se nessa explicação. O seu carácter abusivo foi-se revelando e agravando com o passar dos anos, constata Lena. “Quando o conheci, inicialmente não era assim. Está a tornar-se cada vez pior. Já não tem paciência. É da idade e da bebida”. Os dias do seu patrão, de 64 anos, começam de manhã cedo com a abertura do restaurante, antes dela chegar. Sempre rigorosamente vestido com uma camisa branca, calças pretas e um avental vermelho com o nome da casa, ao longo do dia, discretamente, aproxima-se do balcão e serve-se da prateleira de bebidas alcoólicas. À medida que o seu estado se agrava, eleva o tom e a implicância, usando, por vezes como desculpa, o modo como foi tratado quando estava na posição de empregado. Por si, “os pontapés nas canelas” que recebeu nessa época, deveriam ser agora aplicados às suas empregadas.
Desejo de adoecer
Essa é a menor das ameaças que Lena ouve. O patrão implica com a sua aparência, com o modo como se veste, com a sua forma de andar, de falar e faz comentários desagradáveis sobre a sua vida privada. Nos primeiros anos ficava afetada e não respondia, mas hoje esses insultos já não a afetam tanto, porque sabe as “capacidades” que tem. Quando estava em processo de separação as 15 horas diárias no restaurante levaram-na a “pensar meter baixa”. “Cheguei a pensar em adoecer por qualquer motivo, para poder ir para o hospital, para descansar. Andava desesperada. Tive uma depressão enorme. Emagreci muitos quilos, andava sempre triste, deprimida e ele fazia pior. Parece que se aproveitava para me rebaixar um bocadinho mais”.
Nunca chegou a recorrer a um psicólogo ou até mesmo a um médico. “Eu precisava mesmo na altura de pedir ajuda, mas o meu horário não me dá tempo para ir ao médico. Chego a deixar passar exames marcados porque não tenho ninguém para me substituir”, refere. As agressões psicológicas que sofreu fizeram-se sentir no seu físico. “Comecei a ter problemas de estômago, de intestinos, gastrite crónica, por comer mal e à pressa, problemas renais, de costas e varizes”.
Segundo Nuno Mendes Duarte, coordenador da Oficina de Psicologia, parceira do projeto Nós as Pessoas, que atualmente tem as vagas esgotadas, os 11 pacientes acompanhados também apresentavam queixas semelhantes. Na sua maioria eram empregados de mesa, cozinheiros e responsáveis pelos restaurantes, entre os 26 e os 58 anos de idade, com “níveis de ansiedade muito elevados, associados a preocupações e pensamentos persistentes que causavam mal-estar”. A pandemia veio agravar os problemas já existentes, a “gestão de emoções como a irritabilidade e a raiva e as dificuldades na interação social”. Outro fator de preocupação era “a incerteza e o futuro dos seus postos de trabalho”.
“Não sei se não estão a evitar querer fechar mais casas”
Do mesmo modo, a incerteza e as responsabilidades demoveram Lena de se despedir há 12 anos. “Não tinha condições. O meu ex-marido não me ajudava a sustentar o meu filho. Tinha de fazer aquelas horas para poder ganhar mais dinheiro e pagar a conta da casa”. De momento, não tem planos para procurar outro local de trabalho. “Em serviço de mesa até aos 36 anos somos consideradas novas, mas depois disso já somos velhas. O que me leva a ficar é saber que tenho direitos, por causa dos meus 32 anos de casa. Se o patrão vender o estabelecimento e a nova gerência não me aceitar como empregada, ele tem de me pagar os direitos.”
Num contexto geral, Paulo Amado reconhece que apesar da atividade turística ser muito importante para Portugal, “assenta numa mão de obra que está sujeita a um trabalho do tipo intensivo, com longas jornadas e feito em épocas festivas”. A crise que o setor da restauração atravessa também pesa na decisão de Lena. “Chego ao fim do mês e tenho aquele dinheiro certo para pagar as despesas. Estou efetiva e se mudar para outro sítio nada é certo. Podem não me pagar o ordenado, ou pagar a recibos-verdes, ou estar a contrato seis meses e depois mandarem-me embora para não me passarem a efetiva”.
O seu ambiente de trabalho não tem passado despercebido, tanto pelos clientes como por alguns inspetores do trabalho. “Cheguei a ter uma pessoa comigo ao telefone a perguntar se não queria que aparecesse no restaurante. Como na altura eu estava separada e tinha de pagar as minhas contas disse que não”. Se a inspeção viesse ao restaurante o mais provável é que fosse encerrado. “Isto está tão mau para os poucos restaurantes que existem, que acho que eles [inspeção] até fogem disso. Estão mal de finanças e têm pouco movimento. Não sei se não estão a evitar querer fechar mais casas”.
O caminho de casa faz-se longo, apesar da companhia. No total dura uma hora e meia. No dia seguinte, por mais dez anos e alguns meses a longa jornada, os maus-tratos e o assédio irão continuar. O que resta a Lena é a esperança que a gerência mude e a infelicidade da nova jovem ajudante de cozinha, que ultimamente tem sido o principal alvo do patrão.
As identidades dos entrevistados foram ocultadas, para sua proteção.