A Revolução do 25 de abril foi desencadeada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) com o objetivo de depor o regime do Estado Novo, terminar com a guerra colonial e instaurar um regime político democrático. Marcello Caetano, que sucedeu a António de Oliveira Salazar em 1968, rendeu-se e foi exilado no Brasil.
A descolonização dominou a agenda política no verão de 1974. O futuro das colónias estava agora em cima da mesa e a ser discutido entre o MFA, o Governo Provisório e os diferentes movimentos de libertação.
Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique tornaram-se independentes entre 1974 e 1975 após 13 anos de conflitos armados entre os vários movimentos de libertação africanos e as Forças Armadas portuguesas. Mais de meio milhão de portugueses regressaram ao País oriundos das ex-colónias. Ficaram conhecidos como “retornados”.
Cristina Caramelo, moradora nas Caldas da Rainha, recorda com saudade a vida “saudável e sã” que tinha em Benguela, Angola, para onde se mudou com a família quando tinha 10 anos. Para além do custo de vida ser manifestamente mais baixo do que aquele que encontrou quando chegou a Portugal, destaca os laços que foram criados. “Não havia televisão, pelo que as pessoas se juntavam à noite para ir ao bar ao pé da praia. O Bar Ferreira foi onde eu bebi, pela primeira vez, Coca-Cola e 7Up, que vinha da África do Sul”, confidencia.
“As crianças eram mais crianças”
Também Margarida Gaspar, que foi para Lourenço Marques (agora Maputo), Moçambique, com apenas 8 dias, partilha da mesma visão. “Costumo dizer que quando abri os olhos estava lá. Todas as minhas recordações de infância são de lá. E, se calhar por isso, guardo-as com muito carinho. Tive uma vida feliz, a minha família era de classe média alta. O meu pai tinha uma empresa de tintas e nós acompanhámos muitas dessas viagens. Fui muito vivida”. O choque chegou quando veio a Portugal pela primeira vez. Foi em 1970, com nove anos. “Odiei. Pensei ‘porque é que os meus pais vieram?’”.
Margarida notou de imediato as diferenças entre os dois países. “A vida cá era muito diferente da de lá. As mulheres só saíam com os maridos, não fumavam e as crianças tinham algumas obrigações. Lá era mais descontraído. As crianças eram mais crianças, brincávamos até às 10 da noite na rua”, relembra com saudade. “Lá tinha uma vida muito livre. Cheguei aqui e fiquei em casa, na varanda, a ver as pessoas passarem. Não havia aquele convívio familiar, brincadeiras, era uma coisa muito fechada”, sublinha.
Cristina relembra um episódio marcante logo no primeiro dia de aulas em África. “Eram pessoas completamente diferentes no relacionamento uns com os outros por comparação com o que encontrávamos cá. Posso dizer que no meu primeiro dia de aulas não conhecia ninguém, parecia um bichinho do mato, enfiei os meus olhos na mesa e três raparigas vieram ter comigo. Foram elas que vieram ter comigo. O relacionamento era saudável, de querer interagir, sem olhar a estatutos sociais”, começa por explicar. “Tinha uma liberdade extrema com 10 anos. Em Portugal quase tinha de pedir autorização ao ministro para atravessar a rua”, lamenta.
“Tudo o que tinham, ficou lá”
Em Angola, havia três forças políticas nas ruas: MPLA, FNLA e UNITA. Muitas armas, muita violência, muito caos. “Se precisasse de ir à casa de banho, tinha de ir de gatas” por receio das balas perdidas. “Os meus avós deixaram lá tudo. Em 74 vieram de férias para Portugal, chegaram cá a 26 de abril e já não regressaram. Tudo o que lá tinham, ficou lá. Trouxeram a roupa que tinham no corpo. Depois, os meus tios chegaram cá em outubro de 75 e também só trouxeram o que tinham no corpo, mais nada. E mesmo assim foram interpelados sobre para onde é que iam. Havia uma suspeição e um medo constante”, diz Cristina. “O meu avô tinha uma vivenda, onde vivia, e uma vivenda na praia. Não deu rumo nenhum a nada. Sei que a casa na praia foi assaltada e vandalizada. A casa da cidade foi arrendada, mas nunca ninguém recebeu renda”, diz com mágoa.
Margarida lembra-se perfeitamente dos momentos de incerteza e pânico com a chegada do 25 de Abril. “Recordo-me de ouvir um burburinho e de a minha mãe dizer ‘ela já não vai para a escola, não sei o que é que vai acontecer’”. Os dias seguintes decorreram com alguma normalidade, mas “depois começam os tumultos e esse foi um período difícil. Começa a haver receio do que seria o futuro”.
“Foi uma situação muito difícil com muita gente a morrer”
Margarida viu e viveu coisas que nunca mais esquecerá. “Lembro-me perfeitamente de um dia em que era suposto chegar a casa às 14h e não cheguei. Cheguei à noite, porque Samora Machel [na altura Presidente de Moçambique] tinha feito um comício e fomos obrigados a ficar na escola até à noite a ouvi-lo. Aí as coisas começaram a agravar-se. Nós morávamos num bairro mais recatado e saímos. O meu pai liga para minha mãe e diz ‘é melhor vires com a miúda, porque começou a haver incidentes na autoestrada’”, nomeadamente muitos carros a serem queimados.
“Foi uma situação muito difícil com muita gente a morrer. Víamos carrinhas de caixa aberta a passar com as pessoas que iam morrendo. Tudo o que era branco era para morrer. Era um ódio primitivo”. Apesar de tantas adversidades, os pais de Margarida não quiseram desistir de tudo o que tinham conquistado. “Ficámos com o pensamento de que isto ia ser ultrapassado. Esta onda de violência acalmou e começou a ser uma vida mais normal”, mas sublinha que as revistas aleatórias eram frequentes. Em 1975, o permanente clima de instabilidade levou a que abandonassem definitivamente Moçambique.
O regresso a Portugal
À chegada a Portugal, reencontraram-se com um casal amigo da família que veio “antes da Independência de Moçambique e que vivia em Coruche”. Margarida assume que mesmo sem ter trazido quaisquer bens materiais, teve sorte. “Tínhamos uma casa onde ficar”. O pai, ceramista, montou um negócio de cerâmica nesta pequena vila em Santarém. Margarida acabou por ir para Lisboa estudar e o resto, diz com mágoa, “foi ficando para trás”.
Também Cristina foi obrigada a um recomeço com o 25 de abril, “mas não com tantas dificuldades como muitos que vieram”, alerta. “A minha casa parecia um acampamento. Tinha os meus avós, e os meus tios e os sogros da minha tia. Entretanto, o meu pai arranjou um quarto para os sogros da minha tia, um tio meu que estava em França emprestou a casa para a minha tia, para o marido e para as filhas.” No caso do tio, “a mulher tinha família cá e optaram por ir para ao pé da família dela”. A pouco e pouco, as coisas começaram a compor-se. Recorda que os tios beneficiaram do IARN (Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais), um organismo que facultava dinheiro, roupa e comida para ajudar na instalação e integração dos retornados.
“O governo português não pensou”
Em jeito de conclusão, Cristina lamenta a forma como todo o processo foi conduzido. “Foi uma independência muito mal dada, como se tivéssemos medo. Podia ter sido dada a pensar nos portugueses que lá estavam e garantir a sua segurança, como anos mais tarde fizeram com a independência de Macau. O governo português não pensou nos milhares de portugueses que tiveram que vir pela independência ter sido mal dada. Não só prejudicaram esses, como também aqueles que já cá estavam. Ninguém saiu beneficiado desta situação”, conclui.