O paradoxo da liberdade

Ao passarem 49 anos sobre a revolução do 25 de Abril e sobre os 48 anos das eleições para a assembleia constituinte é tempo de refletir sobre o estado do regime democrático, mas também da sociedade em Portugal.

Ao aproximarmo-nos de 50 anos de democracia plena notamos que Portugal é, atualmente, um país em convergência com os índices de desenvolvimento das nações mais desenvolvidas economicamente e socialmente no mundo.

No entanto, durante estes últimos 49 anos, a história do desenvolvimento económico, social e material confunde-se com a história similar da Europa Ocidental e principalmente da União Europeia.

Não nos podemos esquecer que o 25 de Abril, trouxe consigo a independência das antigas Províncias Ultramarinas, por muitos chamadas de colónias, levando à perda de grandes proveitos económicos que as explorações destes territórios traziam a Portugal, e à rápida “reinstalação” de milhões de portugueses no território do Portugal europeu. Uma situação destas fez com que Portugal entre o final da década de 70 e o início da década de 80 enfrentasse um sério risco de bancarrota, o que acelerou a necessidade de entrar na União Europeia, situação que se constatou em 1986 e que abriu a possibilidade e necessidade de entrar no espaço Schengen no início dos anos 90 e na moeda única europeia no dealbar do novo milénio.

Como consequência dessa aproximação aos restantes países da Europa, Portugal obteve um forte desenvolvimento económico, sobretudo ao nível das infraestruturas. No entanto, no campo financeiro nem tudo é maravilhoso. Se utilizarmos alguns dos dados estatísticos da plataforma PORDATA e realizarmos alguns cálculos com os mesmos, verificamos que de 1985 até ao momento, a taxa de inflação média anual é de 4,55 %, (bem mais baixo do que os 8,47 % se fizermos o cálculo de 1974 a 2022), no entanto, a percentagem média de crescimento do rendimento médio bruto anual do trabalhador português de 1985 ao momento é de 2,33 %. Ou seja, pelo menos desde a adesão de Portugal à União Europeia até ao momento, o cidadão português vem perdendo poder de compra. No entanto, não podemos dizer que é uma consequência negativa da democratização da sociedade portuguesa, visto não termos dados para fazer semelhante comparação em períodos anteriores.

Não obstante, o 25 de abril foi um dos marcos mais significativos da história de Portugal, um país e nação que se aproxima a passos largos para os 900 anos de existência.

Trata-se de uma data histórica, não só pela sua dimensão política como pela sua dimensão social.

Dimensão política porque instaurou um novo regime baseado numa nova Constituição (a de 1976). Um novo regime ou sistema político, muito mais democrático e de acesso político do que os anteriores. Um regime onde passaram a existir eleições presidenciais, legislativas e autárquicas que não restringem ideais políticos, ao contrário do Estado Novo que não organizava eleições periodicamente, que aplicava uma pesada censura às ideologias políticas e que controlava ferozmente os resultados eleitorais levando a um regime parlamentar unipartidário no período salazarista e mais tarde a um regime parlamentar pluripartidário, muito segregacionista, durante o período marcelista.

E mesmo em comparação com os regimes da Primeira República e da Monarquia Constitucional, o acesso à vida política mudou radicalmente. Com o 25 de Abril, todo e qualquer cidadão maior de idade, sem deficiências ou incapacidades cognitivas, passou a ter direitos políticos, como o simples voto.

Nas questões sociais, são inegáveis os avanços que o 25 de Abril trouxe à população de Portugal, direitos como a greve ou a manifestação, o facto de não existir censura, de não existir uma polícia política, nem prisões políticas são avanços inegáveis.

Entretanto, passados 49 anos, a sociedade mudou e continua a mudar a um ritmo cada vez mais acelerado, fruto da evolução tecnológica exponencial e da evolução científica nas suas várias vertentes.

As exigências sociais são hoje maiores. Os níveis de bem-estar exigidos em 1974 parecem, por vezes, ser parcos face às necessidades do século XXI. Por outro lado, pilares da Revolução como o direito à saúde e à habitação, parecem hoje incompletos e em processo de retrocesso. A economia portuguesa parece estagnar e toda esta conjuntura faz com que ideologias políticas antiquadas e provenientes de regimes totalitaristas regressem em força. Para isso, ajudam também as influências similares vindas dos países vizinhos e próximos geograficamente.

Poderíamos com tudo isto dizer que a culpa é do partido A ou partido B ou dos principais partidos que têm legislado o país durante estas quase cinco décadas. Mas na realidade, a verdade ou parte dela é muito mais complexa.

Passados 49 anos e mesmo com um índice de escolaridade média muito maior, os cidadãos continuam a não associar liberdade a responsabilidade.

Viver num regime democrático liberal, com direitos e garantias de liberdade é também aumentarmos o índice de responsabilidade individual.

Não raras vezes se ouve alguém dizer, “que os políticos isto ou aquilo” como se todos os cidadãos maiores de idade na posse das suas capacidades cognitivas não fossem também eles políticos.

Só o ato de votar, já é um ato político. E se nas últimas décadas o número de partidos e forças políticas aumentou grandemente, se o nível de escrutínio em campanhas políticas, debates, sessões de esclarecimento e outros aumentou, como pode a percentagem de abstenção continuar a crescer?

Será que a culpa é só daqueles que se candidatam aos cargos políticos e que exercem essas funções?

E já agora quantos portugueses e cidadãos de Portugal já participaram em consultas públicas ou em assembleias municipais ou de freguesia, ou puramente acompanham ao detalhe as ações do partido político em que votaram e que ajudaram a eleger um determinado deputado ou determinado vereador?

É devido a este afastamento exercido pelo cidadão comum, agente político (mas não possuidor de um cargo político), face aos órgãos de decisão, que o país não progride tão rapidamente e tão sustentadamente como se esperaria ou desejaria.

É por este motivo que o cidadão comum também é responsável, culpado e não vítima como muitas vezes se tenta personificar. Esta incapacidade é, inclusivamente, o motivo pela manutenção de algumas práticas censórias invisíveis, que restringem indiretamente a liberdade de expressão sobretudo no mercado laboral, mesmo quase 50 anos após o fim do regime ditatorial do Estado Novo.

Mas o 25 de Abril não trouxe só mudanças políticas e económico-sociais, trouxe também alterações filosófico-sociais (se me permitem o abuso linguístico).

Viver em regimes ditatoriais é por vezes mais fácil em certas questões. A moral é só uma e indiscutível, a ética ou a deontologia é só uma e indiscutível, a verdade é só uma e indiscutível, a razão é só uma e indiscutível, e até o culpado não morre solteiro, mas fica casado em regime monogâmico e tradicional. No fundo, tudo é esquemático, lógico e facilmente entendível, facilitando certos padrões comportamentais e sociais.

Com a abertura da sociedade a direitos e deveres iguais, a uma igualdade entre estatutos, géneros e gerações, todos estes aspetos perdem a sua objetividade fria, e tornam-se em elementos alvos de uma subjetividade múltipla só ao alcance de pessoas com maior sensibilidade e esclarecimento social.

Julgo que é neste ponto que a sociedade portuguesa se encontra. Atualmente o que para uns é moral, para outros é imoral, e ninguém tem mais razão que o próximo, é tudo uma questão de compreensão do outro. A ética e a deontologia são hoje passíveis de discussão, embora nem sempre de obrigatória revisão e alteração.

A verdade não é sempre única, nem igual para todos, mas tal como no caso da moral, a verdade de uns não é melhor que a verdade de outros, é só diferente.

A culpa continua a não dever morrer solteira, mas o ato de encontrar o culpado deixou de ser tão vital, porque a culpa tornou-se muito complexa. Deixou de ser monogâmica e tradicional para se transformar em poligâmica e com muito mais níveis, categorias, intensidades e correlações de culpabilidade.

No fundo, a liberdade tão proclamada, festejada e desejada a 25 de abril de 1974 é hoje um paradoxo. Não deixou de ser um direito, um prazer e uma felicidade. Mas tornou-se similarmente, um dever, uma responsabilidade e uma complexidade mais profunda do que a sensibilidade e os limites de aceitação de muitos cidadãos permite.

Neste contexto, urgem duas questões.

O 25 de Abril está finalizado e completo? Não, pelo contrário. Está longe de estar terminado, nem nunca deverá ficar completo.

O 25 de Abril esgotou o seu projeto de sociedade e tornou-se numa utopia? A resposta está na capacidade que o cidadão tem de aumentar a sua sensibilidade e compreensão do outro e de aceitar a diferença e variedade.

Ao aproximarmo-nos do cinquentenário da Revolução do 25 de Abril de 1974, paira sobre Portugal e sobre os portugueses a questão final. Chega de democracia e liberdade ou vamos continuar a construir o projeto inacabável?

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