As cinco reflexões do Presidente da República sobre a Justiça

No passado dia 10 de Janeiro ocorreu a cerimónia de abertura oficial do ano judicial, na qual o Presidente da República fez um discurso que merece que sobre ele nos debrucemos.

O discurso continha cinco reflexões sobre a justiça em Portugal, a saber

1. A Pandemia e as crises financeiras desde 2009, não diminuíram a importância da justiça, antes a aumentaram. Só uma visão redutora dirá que em termos críticos a justiça perde relevo ou prioridade.

2. A justiça não é somente a que envolve mais litígios, é de igual modo a de horizontes mais vastos. 

3. A justiça com perspectiva de longo fôlego é, por ventura, incompatível com recursos concebidos para outra sociedade, outra economia, outra vivência cidadã. Portugal de 2023 é muito diferente do Portugal dos anos 90, ou de início do século. Repensar a jurisdição comum e administrativa e fiscal, tornar mais flexível e ajustável todo o sistema, mecanismos de monitorização permanente, recursos, nomeadamente humanos, adequados às necessidades. Tem de haver consenso vastos de regime para isto ser alcançado.

4. Nem só de poder judicial em sentido orgânico se faz a justiça. Também se faz de legislação e de administração. Legisla-se e administra-se demais para o passado. Retroage-se ou retroverte-se em demasia, recorre-se ao excepcional à mingua do geral. Multiplica-se o labirinto que virá a motivar a intervenção jurisdicional.

5. Os valores sociais mudam e a democracia deve respeitar essa mudança. Mais e melhores direitos. Mais e melhor estado social de direito. Mas e se a mudança for em sentido contrário? Deve a legislação, a administração e a justiça, acompanhar essa mudança? Há quem sustente que sim. A resposta cabe a todos, mas a Constituição dá balizas, quadros de valores gerais e abstractos.

A última frase do discurso do Presidente da República é a mais impressiva e a que sumaria todo o seu tom: Os valores personalistas e humanistas, valores fundamentais de que a Constituição se quis e deve ser portadora, são irrenunciáveis e inegociáveis, neles começa e por eles passa e por eles deve afirmar-se a justiça que aqui hoje invocamos.

A questão é que estes valores fundamentais, personalistas e humanistas, são constantemente obliterados, por quem mais devia por eles velar.

E partindo já para a primeira reflexão, dúvidas não restam que em tempos excepcionais como foram e são os da pandemia, a justiça é mais importante do que nunca. Portugal viveu 15 estados de emergência entre 2020 e 2022 que tiveram como consequência a suspensão de direitos fundamentais dos cidadãos. É extremamente grave que muitos desses direitos tenham sido suspensos sem estado de emergência em vigor, através de resoluções ilegais e inconstitucionais do Conselho de Ministros que não os podia restringir ou suspender. Esta foi uma actuação gravíssima e lesiva do estado de direito democrático que, infelizmente passou sem que uma única voz institucional se levantasse para contra ela protestar, excepção feita ao então Bastonário da Ordem dos Advogados. A lição a retirarmos, e espero que esta tenha sido a lição que o próprio Presidente da República tenha retirado e daí a menção a este ponto no seu discurso, é de que os direitos fundamentais não podem ser restringidos a qualquer custo, muito menos com a violação sistemática de regras constitucionais, ferindo-se assim o estado de direito democrático.

Os segundo e terceiro pontos da reflexão referem-se à justiça de longo fôlego, e ao anacronismo a que o edifício judiciário está agarrado, com tantas normas e procedimentos ultrapassados, obsoletos mesmo, com diferenças entre jurisdição comum e administrativa e fiscal, bem como com a crónica falta de meios, financeiros, tecnológicos e sobretudo humanos, que tudo justificam, que tudo desculpam, como se essa falta de meios não resultasse de uma opção política do governo.

Há que resolver de uma vez por esta constante falta de meios e de recursos que assolam os tribunais, onde se chega ao ponto de ter que se suspender audiências de julgamento porque o tribunal não tem orçamento para substituir o toner da impressora (sim aconteceu directamente comigo, não são fake news). Como se pode pensar numa justiça adequada aos tempos que vivemos, se não existem os meios básicos para a ter a funcionar? Primeiro que tudo, há que dotar o sistema judiciário das competências básicas para suprir estas necessidades primárias de funcionamento. Enquanto isto não for feito, tudo o mais são meras quimeras que nunca se transformarão em realidade.

O ponto 4 chama a atenção para mais um importante problema: a qualidade e quantidade de legislação produzida. Nos últimos três anos, por via das funções que exerci no Conselho Geral da Ordem dos Advogados, tive de elaborar pareceres sobre alguma da legislação produzida na Assembleia da República. Além de ser muita, excessiva, repetitiva, a legislação que diariamente é debitada, como se estivéssemos numa fábrica de laboração contínua, é também, muitas vezes, mal redigida, mal pensada, ou seja, mal concebida. Muito ignorado é o “Guia de legística para a elaboração de atos normativos” que, basicamente, pretende ser um instrumento de ajuda ao legislador para comunicar bem a sua actividade legislativa, devendo adoptar, para tanto, regras claras sobre a concepção, a redacção e a sistematização da lei, e que a própria Assembleia da República achou por bem criar em Maio de 2020. É imperativo que a produção legislativa seja bem feita, para que possa ser bem aplicada.

Por fim, o quinto e último ponto. Voltamos ao início, à defesa dos valores personalistas e humanistas, algo de que não podemos nem devemos abdicar nunca. Enquanto o governo e a maioria que o sustenta não perceberam que têm de zelar por estes valores, ao invés de os ferirem constantemente como têm feito, os mesmos estarão em perigo. Um perigo maior quanto maior for o desprezo que o poder político lhes dedica. E quem despreza esses valores, fere de morte a pretendida justiça.

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