De acordo com os últimos dados do Banco Central Europeu, relativos a 2020, Portugal estava em último lugar do ranking de literacia financeira dos 19 países da zona euro. Mas o que é, afinal, a literacia financeira? Para Sérgio Cardoso, Chief Academic Officer no Doutor Finanças – empresa que atua como intermediária de crédito – são “todos os conceitos que estejam relacionados com a gestão das finanças pessoais. Desde coisas tão simples como fazer o orçamento familiar, controlar as despesas, o que fazer com o dinheiro que se poupa, a parte fiscal, como é que preenchemos o IRS, se usamos todos os benefícios que são dados”, até tópicos mais complexos como a parte comportamental. “Como é que se fala de finanças pessoais com os filhos? Conhecer bem os produtos financeiros, o que é que são os créditos? Quais são os custos inerentes? Saber comparar alternativas? Ou seja, tudo aquilo que envolva e que, de alguma forma, tenha impacto no nosso bem-estar financeiro”, acrescenta, sublinhando que não é possível atingir o bem-estar geral sem passar pelo bem-estar financeiro. “A parte financeira é fundamental e toca em quase todas as outras áreas da nossa vida. Se não tivermos esta parte bem controlada não vamos conseguir ser felizes”.
Também Bárbara Barroso, especialista em literacia financeira e fundadora do laboratório de educação e literacia financeira MoneyLab, tem uma visão semelhante. “É o conhecimento e as ferramentas que uma pessoa pode e deve adquirir que lhes permita capacitar para tomarem melhores decisões sobre a sua vida financeira e que lhes possibilite ter uma melhor relação com a área financeira dentro da sua esfera de vida. Muitas vezes tratamos de todas as outras esferas e a parte financeira é descurada. No fundo, é um descomplicómetro. É descomplicar termos relacionados com a vida financeira e que vão impactar na vida de todas as pessoas”, esclarece.
O spread e o Crédito Habitação
É um dos termos mais em voga nos últimos meses e de suma importância para quem tem crédito habitação. Apesar de já se ter banalizado o seu uso, a verdade é que para muitos o seu significado continua a ser uma incógnita. De acordo com o Banco de Portugal, o spread é a “componente da taxa de juro que acresce ao indexante” e a única que pode ser renegociada. Por outras palavras, é a taxa que os bancos cobram para lhe emprestar dinheiro. No fundo, é a margem de lucro que vão ter. “É a única parte que os bancos controlam. A taxa de juro não é controlada pelos bancos. Os bancos têm que distinguir os seus clientes, porque os clientes têm riscos diferentes e o spread é a ferramenta para fazer essa distinção”, explica Sérgio Cardoso.
“Existe um desconhecimento generalizado destes conceitos. As pessoas não percebem os conceitos e acredito que, quando vão à procura de crédito habitação, a preocupação é conseguir aprovar o crédito. Não se preocupam tanto em perceber o que está por trás do spread”, alerta. Bárbara Barroso, eleita n.º 1 em Finanças Pessoais em Portugal pelo Canal História, adverte para as consequências nefastas deste desconhecimento naquela que é a despesa que representa maior peso no orçamento das famílias. “É a diferença de, no final de um contrato, pagar mais 50 ou cem mil euros”. “Não temos todos de ser analistas, diretores financeiros ou economistas, mas todos temos que lidar com dinheiro”, frisa.
Não tem problemas em assumir que teve um papel importante para que este tipo de conceitos já não seja visto como “economês”. “Há um trabalho da minha parte para que hoje no telejornal se fale em spread, assumindo – mal – que toda a gente sabe. As pessoas já sabem que dá para renegociar, mas algumas não percebem que aquilo é uma taxa em cima de uma taxa”, atira. Situação semelhante acontece com o termo inflação. “As pessoas perceberam que não é um conceito macroeconómico e que é algo referente ao meu bolso e que afeta o meu poder de compra”.
“Iliteracia financeira é transversal”
A literacia dos portugueses “está ligeiramente menos mal do que há 10 anos”, salienta Bárbara Barroso. No entanto, a facilidade de acesso à informação “cria uma falsa sensação de conhecimento. Eu não tenho conhecimento, tenho é acesso à informação de forma mais fácil” por comparação com outras gerações.
A especialista lembra que já deu aulas do “primeiro ao 12.º ano” e alerta que a “iliteracia financeira é transversal, independentemente do rendimento e do nível de escolaridade”. Para Sérgio Cardoso, esta “é uma questão de fundo que vai demorar várias gerações a resolver e só se vai conseguir resolver quando todos os stakeholders tiverem comprometidos”. Além disso, e apesar de já estar em vigor o Plano Nacional de Formação Financeira, orientado para a Educação Pré-Escolar, o Ensino Básico, o Ensino Secundário e a Educação e Formação de Adultos, “ainda não se ensina nas escolas de forma genérica. É de valor que existam ferramentas ao dispor, mas é preciso haver quem as aplique. Reforça ainda a importância da forma como a literacia financeira é explicada às várias faixas etárias. “Consoante as idades, há conceitos que são mais adequados e o nível de maturidade dos jovens tem que ser tido em conta”.
Perante todas estas lacunas, o MoneyLab procura “dotar as pessoas com conhecimento e ferramentas que lhes permitam tomar melhores decisões sobre a sua vida financeira”. A empreendedora destaca o MoneyBar, o primeiro e maior podcast – gratuito – de finanças pessoais em Portugal e o site, que tem vários artigos com informações úteis e várias dicas. Existe também uma vertente de formações, com destaque para a Do Zero à Liberdade Financeira. É também a entidade responsável pela “formação financeira do Sport Lisboa e Benfica”. Sublinha ainda os vários programas desenvolvidos de Norte a Sul do país com o intuito de “capacitar jovens e crianças com educação financeira”. Bárbara Barroso detém o recorde de maior aula presencial de finanças pessoais em Portugal, na sala Tejo do Altice Arena. O objetivo é contribuir “para que Portugal saia da cauda da Europa”.
Missão idêntica tem o Doutor Finanças, que se compromete a “ajudar os portugueses a terem as ferramentas necessárias para poderem tomar as melhores decisões financeiras e atingirem o seu bem-estar”. Para tal, são várias as iniciativas. O Portal Doutor Finanças funciona como um repositório em que diariamente são colocados novos artigos sobre temáticas relativas à literacia financeira. Uma das apostas mais recentes é a Academia Doutor Finanças. O projeto, que tem Sérgio Cardoso como responsável, visa dar formação a escolas, instituições e empresas. “Uma coisa curiosa é que são os alunos a pedir, não as instituições. Há uma noção dos estudantes desta lacuna na sua formação”. Além disso, destaca algumas iniciativas para os mais novos: uma peça de teatro e um livro escrito para crianças. “Damos as ferramentas, alertamos para o problema e tentamos promover a relevância da literacia financeira. É o nosso contributo”, assinala.