A inflação aos olhos dos pequenos comerciantes: “Não temos hipóteses de sobreviver”

A TejoMag veio até à pacata vila de Moscavide perceber o outro lado da moeda da inflação: o dos pequenos comerciantes. Por entre as ruas e ruelas, fomos falando com vários vendedores. Uns mais tímidos, outros sem qualquer problema em expressar as suas opiniões. Foi então que chegámos à fala com Farouq Suleman, um residente em Moscavide há já 42 anos e dono de uma mercearia na principal avenida da vila. Numa longa conversa, a escassez de clientes não passou despercebida. Nos mais de 45 minutos em que estivemos na loja, entraram três ou quatro pessoas no estabelecimento. Nenhuma gastou mais de 10 euros. 

Farouq Suleman à porta da sua mercearia.

“Não temos ferramentas para combater isto”

“Os serviços aumentaram. As pessoas não passam sem água, luz, gás, telemóvel. Moral da história: o que fica é para a renda da casa ou para a prestação ao banco. Não há dinheiro que sobre. Ficam os mínimos para fazer compras para a alimentação”, aponta. Mostra-se resignado perante a falta de soluções. “O que é que nós podemos fazer contra isso? Nós, pequenos, não temos ferramentas para combater isto. Quem as tem são os grandes hipermercados, que oferecem isto e aquilo. O pequeno não tem hipóteses de sobreviver neste meio turbulento”. 

Num cenário já tão difícil, a solução passa por baixar as margens de lucro para não perder ainda mais clientes. “Não nos podemos dar ao luxo de perder um cliente. Se tivermos de vender ao preço anterior ou em vez de ganhar 5 ganhar 3, então ganhamos 3. Mas pelo menos ganhamos qualquer coisa”, desabafa. Uma das medidas adotadas para mitigar esta quebra de clientes foi a implementação de um serviço – muito usado nas grandes cadeias de super e hipermercados – de entrega ao domicílio. “Criou-se uma ligação quase familiar” com alguns dos clientes. Nesse sentido, já é prática comum levar as compras a casa das pessoas com mais dificuldades de locomoção.   

A loucura do azeite e óleo 

Nestes últimos meses, destaca a “loucura” que foi a subida do preço do azeite e do óleo, embora já “esteja a baixar”. Além destes, os farináceos também aumentaram consideravelmente. Lembra ainda que as pessoas costumavam comprar pequenos luxos, como um “bolinho para acompanhar o pequeno-almoço ou uns cereais mais caros”. Agora, é só o básico porque “sobeja pouco depois de pagar as contas obrigatórias”. Exemplo disso são os crescentes pedidos para “pagar depois”. “Gente que tinha um poder de compra razoável e que agora já nos pedem ‘ó vizinho venho pagar daqui a um bocado’ ou ‘venho pagar amanhã, não se importa?”, acrescenta Farouq. Explica-nos, sensibilizado, de que estes pedidos surgem na compra de produtos alimentares, como o arroz ou o leite. “Não pedem um detergente, um creme ou um perfume. Nada disso”, explana. “Antes levavam a embalagem de seis pacotes de leite. Agora levam um.”

E a fruta? 

Um pouco mais à frente, ainda na principal artéria da vila, chegámos à fala com Cláudio, dono da frutaria Paraíso da Fruta. Com mais de dez anos de existência, “sempre teve muitos clientes”. Mas nada caiu do céu. “Trabalhámos para isso”, sublinha o proprietário. Porém, também aqui a inflação deixou marcas que ainda são visíveis. “Janeiro e fevereiro foram dos piores meses que tive aqui face à pressão dos mercados e dos consumidores. Não podia aumentar os preços porque se aumentasse deixava de vender”, começa por nos explicar. Por se tratar de venda produtos frescos, a urgência em vender é maior. Se não forem vendidas, “são coisas que se estragam em dois ou três dias”. Destaca a couve-coração boi que passou dos “50 cêntimos para 1.70 ou dois euros”. O preço das hortaliças subiu em flecha e muita gente deixou de ter condições para continuar a comprar. “Quem foi comprando foram aquelas pessoas que vão às compras e nem reparam nos preços”, acredita.

 

As bancas da frutaria “Paraíso da Fruta”.

Ainda que tente minimizar ao máximo os aumentos para os clientes, nem sempre é possível face à subida galopante do preço de vários produtos. “Custa-me ouvir as pessoas dizerem ‘não dá, as coisas estão muitos caras’. Só que lá está… diminuímos as margens mas as nossas despesas aumentaram. Ninguém faz contas a isso”, lamenta.

Bancas vazias espelham momento de contenção

Seguimos viagem até ao Mercado de Moscavide. Num espaço outrora repleto de vendedores e clientes, deparámo-nos com um cenário bem elucidativo do momento de contenção que se vive em Portugal. Inúmeras bancas vazias e o número de pessoas às compras contava-se pelos dedos de uma mão. Logo à entrada, conhecemos Carla Lopes. Na sua banca de fruta, vegetais e legumes, revela as dificuldades sofridas nos últimos meses e destaca que a subida vertiginosa do preço das hortaliças. “Foi um disparate. Uma vez cheguei ao mercado para comprar alfaces para o restaurante porque tinha encomendas. Tive de comprar uma caixa de alface a nove euros. Seis alfaces por nove euros”. Para se ter noção, esta mesma caixa de alfaces custava entre os dois e três euros há poucos meses. Um aumento para o triplo, no mínimo. Porém, salienta que nos últimos dias já viu mudanças significativas nos preços de vários vegetais. “Comprávamos os espinafres a 4 euros, agora estamos a comprar a um euro ou a 1.5 euros”. 

 

Carla Lopes trabalha há vários anos no Mercado de Moscavide.

“Tento sempre fazer um preço mais baixo”

Tal como no caso da mercearia de Faroud, também Carla não subiu os preços proporcionalmente face aos aumentos dos fornecedores. Caso contrário, iria perder ainda mais clientes. “Não ganhávamos muito. Se comprávamos a 3 euros, vendíamos a 3.50 euros. O lucro diminuiu.” Além disso, os clientes leais também são recompensados, o que acaba por diminuir ainda mais esta margem de lucro. “Se tenho um cliente leal, tento sempre fazer um preço mais baixo”. As perdas foram na ordem dos 20% nos últimos meses. Tendo o janeiro sido “horrível”, confidencia-nos.

Um pouco mais à frente, estão situadas as bancas do peixe. Aproximámo-nos daquela que estava sem clientes e falámos com Emília Letra, que para além de uma vida dedicada ao peixe – inicialmente como pescadora, agora como vendedora –, adora cantar (o apelido é indicativo!). Neste caso, a quebra de faturação não se deve à subida do preço do peixe, mas sim ao menor poder de compra dos consumidores.

João Vicente ajuda a sua mulher, Emília Letra, na peixaria.

“O Mercado não está apelativo”

“Os peixes frescos e de mar são sempre diários. A inflação aqui não funciona muito dessa forma”, começa por explicar. Depende da quantidade de peixe que é pescado. “Quando há mais peixe, o preço baixa”. Neste caso, a quebra de faturação não se deve à subida do preço do peixe. A culpa também é da inflação, mas desta feita indiretamente. Os consumidores têm menos dinheiro no bolso e têm de fazer escolhas de alimentação. O peixe fresco é preterido pelo congelado ou enlatado. Emília lamenta ainda as condições do Mercado. “Não está apelativo”, considera. As bancas desertas explicam-se pelos sacrifícios que poucos estão dispostos a fazer. “É um negócio que nem toda a gente quer. Ninguém quer esta vida. Para ir à lota é à 00h30. Temos de perder aqui uma noite. Fazer diretas sobre diretas. Já ninguém quer isso”, explica.

Bancas vazias no Mercado de Moscavide.

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