Com a inauguração do novo jardim da Praça do Império ressurgiu o debate sempre latente em volta dos brasões alusivos às antigas colónias portuguesas.
Um debate estéril que coloca em oposição os saudosistas aos novos ocultadores da história.
Esta praça tem uma denominação toponímica que nem sempre foi igual. Durante muito tempo e mesmo após a Exposição do Mundo Português (em 1940), mantinha a denominação, já antiga, de Praça Dom Vasco da Gama, só passando a ser Praça do Império em 1948 por assim já ser denominada popularmente como justificava a deliberação camarária no edital de 29 de abril.
Mas muito embora a denominação da praça possa servir de discussão, são os brasões florais ali colocados em 1961, por ocasião da 11ª Exposição Nacional de Floricultura e agora substituídos pela sua representação na calçada do jardim, que têm gerado nos últimos anos, uma acesa polémica.
Brasões que representam em parte as (na altura) províncias ultramarinas portuguesas, anteriormente juridicamente denominadas de colónias portuguesas.
Para além do duelo apologético, o que me parece mais interessante é o possível “duelo” que os conceitos império e colónia travam aquando de uma análise sobre as realidades jurídicas e práticas de jure e de facto, respetivamente.
Se atentarmos à documentação oficial, nunca Portugal se assumiu como um império de forma oficial e generalizada, apenas existindo alguma documentação parcial do Estado a mencionar a palavra. Nunca nenhum chefe de estado ou chefe de governo português foi proclamado ou se autoproclamou como imperador. Como tal, na perspetiva de jure, Portugal nunca foi um império.
No entanto, na prática, nunca houve uma convivência igualitária entre a cultura praticada no atual território de Portugal e a cultura praticada por imensos povos nos territórios administrados por Portugal durante os seus cinco séculos de presença intercontinental. Pelo contrário, os portugueses como os demais europeus sempre tentaram criar uma supremacia cultural do povo de Portugal continental sobre os demais povos sob administração portuguesa pelo mundo fora.
Nesse sentido, Portugal constituiu entre 1415 e 1999, um império.
Contudo, nestas questões de impérios, nem sempre podemos ter uma visão unívoca. Senão vejamos.
Não poderemos considerar a nossa vizinha Espanha como um império que se mantém nos dias de hoje? Mesmo com uma organização político-administrativa de autonomia regional, não continua a existir um domínio cultural e político de Castela sobre os demais, povos, nações ou culturas que constituem a pátria espanhola? No entanto, o mundo, a União Europeia em concreto, e os portugueses em especial convivem bem tal situação.
Não existe no outro lado do mundo um país chamado Japão cujo chefe de estado é o imperador? E não convivemos todos bem com esse facto?
Muito diferentes, são aqueles que se comportam como imperadores, que mantém o seu império, e que na ânsia de o alargarem empreendem processos expansionistas como Vladimir Putin, faz por estes dias.
A Praça podia voltar a chamar-se Praça Dom Vasco da Gama, mas se tem lá os brasões das antigas colónias, qual o problema em manter o nome de Praça do Império?
No entanto, são os brasões que tanta polémica têm levantado.
No fundo, o verdadeiro problema não está relacionado com a existência dos mesmos, mas antes com a falta de jardineiros para manter um cenário que tanto enobrecia os arranjos florais públicos em Lisboa e que transformou os brasões florais em brasões calcetados.
Em boa verdade não são só os brasões coloniais ou das províncias ultramarinas a estarem representados na Praça do Império. Também lá estão os brasões dos 18 distritos de Portugal continental, na época imperial denominado de metrópole e os brasões das regiões dos Açores e da Madeira, Ao conjunto junta-se a Cruz de Cristo e a Cruz de Avis.
Contudo, são os brasões das antigas possessões portuguesas que levantam a questão colonial. Mais uma vez, uma questão que merece uma análise comparativa na vertente de jure e de facto. Legalmente, foi a ditadura militar antecedente propulsora do Estado Novo que criou o regime colonial. Nesta época, existia mesmo uma política ultramarina com base na ação jurídica colonial como prova o Acto Colonial de 1930, reforçado na Constituição de 1933. Porém, logo nos anos 40 (no caso da Guiné Portuguesa) e depois em 1951, o regime português aboliu o estatuto de colónias e reimplantou o estatuto de Províncias Ultramarinas, criado pela Monarquia Constitucional e continuado pela Primeira República. No seguimento desta política, em 1961, o Estado Novo decidiu abolir o estatuto do indigenato criado ainda nos anos 20.
Porém, na prática e embora tenham existido esforços para minorar a situação, o regime e ação colonial continuaram sempre até à independência destes territórios em 1974 e 1975. Recordemos que a presença ultramarina portuguesa fora da Europa só terminou em 1999 com o fim da administração portuguesa em Macau.
Existir, portanto, um local denominado de Praça do Império em Belém, uma zona de Lisboa rodeada de símbolos históricos que aludem à Expansão Ultramarina Portuguesa, não é um serviço de ativismo ideológico. É um ato de pedagogia e educação.
Não cabe à História, aos historiadores, nem à toponímia agitar bandeiras ideológicas, cabe-lhes contar a verdade.
A polémica dos brasões da Praça do Império, encerra um duelo entre duas fações da sociedade que tem graves problemas em aceitar a realidade da democracia liberal em que Portugal se transformou e deve continuar a manter.
Por um lado, existem os que defendem a manutenção dos brasões meramente por questões saudosistas anacrónicas. Portugal, foi efetivamente um país imperialista, implementou ações colonialistas e deixou de ter sob sua administração territórios hoje subdesenvolvidos, alguns envolvidos em regimes ditatoriais sob influência económica da maior potência emergente do mundo, mas soberanos. Estados independentes que devem continuar a realizar o seu caminho mantendo a sua soberania e trabalhando em cooperação com Portugal, sempre que assim desejarem. Portugal, mesmo com as suas incongruências é atualmente um país e uma nação imensamente mais desenvolvida, mais livre, mais liberal e sobretudo melhor do que foi durante o Estado Novo. Ser tradicionalista, conservador e nacionalista, não é necessariamente ser saudosista atávico, repressor, hierárquico ou clerical.
Por outro lado, existe uma fação da sociedade que quer apagar as menções ao passado português, argumentando que é um passado racista, xenófobo, elitista. O passado é o passado. Não se pode analisar o passado com os ideais e o conhecimento do presente. Mais uma vez, não se pode ser anacrónico. Portugal é e deve continuar a ser um país constitucional, democrático, liberal, laico, sem afirmações de classe perante a justiça e perante o Estado e cada vez mais inclusivo. É um país e um Estado que dá o direito de cidadania a todos os que querem contribuir para a economia portuguesa, extravasando por vezes essa característica para o direito de nacionalidade o que me parece muitas vezes erróneo e inaceitável. Mas é também um país e um Estado que abre as portas a muitas pessoas que sob o estatuto de refugiado, encontram neste território uma forma de recomeçarem as suas vidas.
Não é com a ocultação da história e do passado que se defendem direitos, liberdades, igualdades e garantias. A ocultação ou rescrição falaciosa da história é uma prática comum dos regimes opressores como bem podemos ver no Leste Europeu atualmente.
Aos moderados que são os que constituem a maioria da população cabe utilizar e aproveitar a toponímia para educar e formar as gerações futuras.
Ao invés de andarmos a discutir a existência ou não dos brasões na Praça do Império devíamos era discutir como criar estratégias e recursos interpretativos e comunicativos para explicar o motivo da existência de tais símbolos, em tal local.
Frederico Gaspar