Antigas dirigentes da Segurança Social apontam falhas no sistema de adoção

Em Portugal existem cerca de 6700 crianças e jovens institucionalizados e poucos dirigentes para acompanhar cada caso, de acordo com o último Relatório CASA, Caracterização Anual da Situação de Acolhimento de Crianças e Jovens da Segurança Social, de 2021.

A aplicação do Regime Jurídico do Apadrinhamento Civil está, ao fim de mais de dez anos, “aquém do que seria desejável”, ainda representa uma minoria de casos no regime de adoção, quase não há famílias candidatas, quem o diz é Sonia Ramos, deputada do PSD, e antiga Diretora de Segurança Social do Centro Distrital de Évora, de 2011 a 2017.

Existem soluções alternativas à adoção como o acolhimento familiar e o apadrinhamento civil, instituto que foi criado e aprovado em setembro de 2009. “Foi desenhado para poder tirar mais crianças das instituições, no entanto, é praticamente ignorado desde a sua criação”, revela Ana Birrento, que exerceu a função de Presidente do Instituto da Segurança Social, entre 2015 e 2016.  Atualmente exerce a função de provedora da Santa Casa da Misericórdia de Azeitão.

O tempo de espera para o processo estar concluído é ainda muito longo, prende-se, “sobretudo com a análise” das famílias, não só por parte dos serviços da Segurança Social, mas também dos tribunais. Há, no entanto, uma “evolução progressiva” sobre a importância da adoção nos últimos anos, com a prevalência da “re-integração na família nuclear” de 39,8%, sendo que apenas 8% das crianças institucionalizadas são adotadas, nas zonas de Lisboa e Porto, através da Santa Casa de Misericórdia.

Ana Birrento foi Presidente do Instituto da Segurança Social de 2015 a 2016. /MARTA ALMEIDA

O apadrinhamento civil tem como objetivo prevenir e combater a institucionalização, e nessa medida, aos padrinhos civis dão-se direitos e responsabilidades parentais, para além de que as crianças não perdem a ligação à família. Qualquer criança com menos de 18 anos pode ser apadrinhada, “é uma resposta de afeto para qualquer criança ou jovem cuja família de origem não reúna as condições necessárias para esse efeito”.

Segundo o relatório CASA existe a prevalência da “(re)integração na família nuclear” de 39,8% . O “acolhimento permanente” continua a aparecer como o segundo projeto de promoção e proteção mais delineado, mas para apenas 9,7% das crianças e jovens.

A adoção foi delineada como projeto de promoção e proteção para 8,5% das crianças e jovens. Com menor relevância aparecem os projetos “(re)integração na família alargada”, “confiança à guarda de 3ª pessoa” e o “apadrinhamento civil” de 5,7%.

Quase não há famílias candidatas para o apadrinhamento civil e são muito poucas as crianças a quem é proposto como projeto de vida. O apadrinhamento é como que uma adoção mais aberta, que procura uma cultura de parentalidade mais plural e, “porventura, a nossa sociedade ainda não está preparada para ela, para o contacto com a família biológica, com outras figuras de referência para a criança”, revela ao TejoMag Sónia Ramos.

Sónia Ramos. /MARTA ALMEIDA

Adianta também que esta medida poderia funcionar em muitos casos como “uma parentalidade assistida e não de filiação, para as famílias em que os pais não estão capazes para o fazer.”

Os resultados da aplicação do Regime Jurídico do Apadrinhamento Civil está, ao fim de mais de dez anos, “aquém do que seria desejável”, uma solução que assegura o direito da criança a viver numa família, uma alternativa à institucionalização ou colocação residencial, e podendo mesmo evitar a entrada da criança no Sistema de Promoção e Proteção.

A última alteração que foi realizada neste âmbito foi através da Lei nº 143/2015, de 8 de setembro com origem na Proposta de lei nº 340/XII/4ª do Governo PSD/CDS).

Para a deputada foi a Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2013, de 11 de junho, que determinou a abertura de um amplo debate tendente à revisão do regime jurídico da adoção, por via da criação de uma comissão integrada por representantes de departamentos governamentais e que recomendou a reflexão de alguns aspetos considerados relevantes e que foram evidenciados pelo Grupo de Trabalho para a Agenda da Criança, criado em 2012.

O Regime Jurídico do Processo de Adoção passou a reunir num único diploma todo o acervo normativo que regulamenta a adoção, com exceção apenas das normas substantivas previstas no Código Civil.

Em termos das alterações que foram feitas Sónia Ramos realça a introdução de maior coerência no sistema, a eliminação da modalidade de adoção restrita, a confiança administrativa passou a estar circunscrita aos casos de consentimento, a obrigatoriedade dos candidatos à adoção em ouvir a opinião da criança sobre o seu futuro, intervenção técnica assente na verificação e aferição da correspondência entre as necessidades da criança adotanda e as capacidades dos candidatos a adotantes.

A ex-Diretora da SS do Alentejo diz que foi criado um Conselho Nacional de Validação, inovação que introduziu no processo de adoção uma responsabilidade acrescida para as equipas técnicas de adoção e consagrou-se o direito do adotado aceder ao conhecimento das suas origens. Foi também disponibilizado um acompanhamento pós-adoção, assente no consentimento e na solicitação expressos da família adotiva. Esta consagração responde à necessidade de criar um recurso de apoio, quando a família se confronta com os particulares desafios da filiação e parentalidade adotivas.

A longa espera com poucos técnicos no terreno

Uma das prioridades, no entender de Sónia Ramos, é a necessidade de reforçar os meios humanos do ISS, nomeadamente as equipas que estudam a situação das crianças e à concretização dos respetivos projetos adotivos (designadas por equipas das crianças) dos 18 Centros Distritais. De acordo com os dados do último Relatório da Adoção Nacional, Internacional e Apadrinhamento Civil estas equipas contaram, em 2020, com 42 técnicos, dos quais apenas 13 (menos de 1/3) unicamente dedicados a esse trabalho.

Apesar de se ter assistido a um ligeiro acréscimo no número de técnicos afetos às equipas no ano de 2019, em 2020 essa situação inverteu-se. Com efeito, do conjunto de 94 apenas 36 técnicos (38%) trabalhavam a tempo inteiro nessa área.

Incentivos financeiros a famílias de acolhimento até aos 18 anos.

Em Portugal a família de acolhimento tem direito a um subsídio mensal destinado a assegurar a manutenção e os cuidados a prestar à criança ou jovem, cujo montante corresponde a 1,2 vezes o valor do indexante dos apoios sociais. A família de acolhimento tem igualmente direito a: Benefícios fiscais (deduções no IRS); Direitos laborais (faltas para assistência à criança ou jovem, licença parental no caso de acolher crianças até 1 ano de idade).

Cada família de acolhimento pode acolher até duas crianças ou jovens até aos 18 anos. E em casos excecionais, como por exemplo, quando há irmãos ou quando existem relações de afeto, podem ser acolhidas mais crianças ou jovens numa mesma família.

Medidas necessárias?

Para Ana Birrento é urgente falar-se de acolhimento familiar, de acolhimento residencial, de adoção e de apadrinhamento civil, na expectativa de consolidar o que de bom já acontece, mas também de melhorar o que não está a resultar.

Muitas vezes, são os próprios candidatos que dificultam o processo de adoção, devido às restrições que colocam na criança que querem adoptar, diz a antiga dirigente do ISS. Por norma, são indicados bebés, ou crianças de tenra idade, saudáveis, deixando para trás todos os outros que se eternizam no sistema de acolhimento institucional, o qual não deveria ser o projeto de vida destas crianças e jovens. “Estar no seio familiar é sempre muito mais benéfico, do ponto de vista afetivo e de dinâmicas e contextos dos agregados familiares. Ter uma família é um direito fundamental das crianças”, refere.

Famílias de acolhimento

É o caso da família de Rita (nome fictício), revela ao TejoMag, que com o marido e os três filhos biológicos,  escolheram “ser família de acolhimento, e não optar pela adoção”, porque sentiram que era mesmo assim: dar em gratuidade total, receber como um filho/irmão para depois deixar ir quando assim tivesse que ser”.

Bastou um telefonema para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que reencaminhou o pedido do casal para o serviço que tem a responsabilidade pelo acolhimento e adoção. Iniciou-se o processo, que depois passa por várias fases, inclui várias reuniões, visitas a casa, entrevistas em família e individuais, exceto no caso dos filhos menores, e que se prolonga por algum tempo, mas que para o casal fez sentido ser assim.

“Não há palavras para exprimir o que nos é dado viver sendo família de acolhimento. E recebe-se bem mais do que se dá. Este é, sem dúvida, o maior ensinamento de todo este processo, de que no fundo recebemos sempre, desde o início, muito mais do que o pouco que pudemos dar.”, comenta Rita.

O papel do Estado

O Estado tem vindo a trilhar um caminho de desenvolvimento da resposta de famílias de acolhimento, que, neste momento, se restringe a Lisboa, geridas pela Santa Casa da Misericórdia e algumas na zona do Porto.

Também a sociedade civil, “tem de encontrar formas de desenvolver um processo de missão de dar resposta” a uma criança ou jovem desprovido de família natural no entender de Ana Birrento.

Ainda existe um “quadro referencial cultural, se calhar idealizado, e o sentimento idílico da adopção dos ‘meninos perfeitos’, justifica acrescentando que “isto também se aplica à Justiça que, muitas vezes, ainda se guia por padrões mais conservadores”.

É preciso maior celeridade no âmbito da Justiça, pois é aqui que tudo começa, com a decisão de adotabilidade, a par de uma transformação de mentalidade sobre os critérios, muitas vezes restritivos e penalizadores, que as famílias colocam.

A adoção não deve ser concretizada porque um adulto ou uma família deseja exercer a sua parentalidade, mas acima de tudo, diz Ana Birrento “porque se está consciente e se quer, de facto, acolher uma criança e educá-la, aceitando e trabalhando com as características físicas e a bagagem cultural, social e emocional que cada uma traz.”

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