Antes de se referendar a circulação de trotinetas em Lisboa ou no Porto, devia ser iniciada uma discussão mais ampla com um Plano de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS) assente em políticas públicas participadas, com “compromissos assumidos”, admite ao TejoMag Bernardo Campos Pereira.
Em vez de a discussão focar a proibição das trotinetas, ou a imposição de medidas contraproducentes como seguros ou capacetes nos modos que poluam menos, a reflexão deve propor medidas consequentes sobre os impactos de um sistema de mobilidade que prioriza o automóvel, o modo responsável pela elevada sinistralidade, problemas de saúde pública e pelo congestionamento urbano, defende o responsável de mobilidade da Lisboa E-Nova.
Considera que quando as regras de trânsito ignoram alguns dos utilizadores da via pública e priorizam o tráfego motorizado, estas podem “incitar comportamentos de incumprimento”.
Portugal, com a maior indústria da bicicleta da Europa, e das maiores do mundo, ainda não assinou a Declaração Europeia da Bicicleta.
Há muitas cidades espanholas que estão anos-luz à nossa frente: Valhadolid, Burgos, Vitoria, Pamplona. Em Barcelona, a trotineta não tem a presença que se vê em Lisboa, pois a aposta é na bicicleta, quer na cidade, quer na área metropolitana.
Em termos de consumos energéticos, “a bicicleta é o modo mais eficaz.”
Bernardo Campos Pereira, responsável pela área da mobilidade da Lisboa E-Nova – Agência de Energia e Ambiente de Lisboa. / Direitos reservados.
Em Paris fizeram um referendo para proibir a circulação de trotinetas. E em Lisboa: trotinetas, sim ou não?
Por agora, penso que não faz sentido referendar trotinetas em Lisboa, no Porto ou qualquer outra localidade portuguesa.
Em Paris existe uma estratégia de mobilidade com vários anos, muito mais desenvolvida do que nas cidades portuguesas, e que procura integrar os modos mais sustentáveis de forma consequente, apostando em andar a pé, bicicleta e transporte público, reduzir o número de automóveis e o espaço que estes ocupam na cidade, e redistribuir o espaço público de forma a melhorar o desempenho ambiental da cidade e a qualidade de vida dos seus cidadãos.
Há outras cidades europeias que têm desenvolvido estratégias de mobilidade eficazes sem ter de proibir trotinetas, mas apostando no fomento dos modos mais sustentáveis. Em Barcelona, por exemplo, a trotineta não tem a presença que se vê em Lisboa, pois a aposta é na bicicleta, quer na cidade, quer na área metropolitana. Entretanto, a Autoridade de Transportes Metropolitanos de Barcelona está a desenvolver um regulamento para trotinetas e as rodas elétricas.
Pode dar exemplos de cidades europeias que estão a desenvolver estratégias de mobilidade eficazes?
Cidades com áreas metropolitanas muito grandes como Londres. E cidades com áreas metropolitanas comparáveis com Lisboa como Amesterdão, Bruxelas ou Copenhaga. Ainda cidades não tão grandes como Valência, Grenoble, Bordeus. Aliás, com a exceção de Madrid, que parou no tempo, há muitas cidades espanholas que estão anos-luz à nossa frente: Valhadolid, Burgos, Vitoria, Pamplona, San Sebastian, Pontevedra, tantas…
Espanha, por exemplo, tal como metade dos países da UE, assinou a Declaração Europeia da Bicicleta. Portugal, com a maior indústria de bicicleta da Europa, e das maiores do mundo, incompreensivelmente, ainda não assinou.
Mas o referendo pode ajudar a esclarecer a circulação das trotinetas?
Antes de se referendar sobre um modo em Lisboa ou no Porto, devia ser iniciada uma discussão mais ampla, e iniciado um Plano de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS) assente num ciclo de políticas públicas participadas, com marcos e compromissos assumidos para decidir que cidade queremos no futuro e como pretendemos lá chegar, sem atrasos, priorizando os modos mais sustentáveis: andar a pé, bicicleta e transporte público coletivo, e desencorajando o automóvel sempre que viável, por exemplo, nas deslocações urbanas.
Sobre o PMUS em si, e para evitar erros, este não devia ser concebido como um plano encomendado a “especialistas” sem mais, desenvolvido à porta fechada e apresentado ao público como se fosse uma lista de presentes (como o suposto PMUS apresentado em Oeiras no dia 3 de abril), mas um plano realizado com participação cidadã, compromissos políticos e assessorado por agentes que conhecem e estudam os sistemas de mobilidade, e as suas componentes, incluindo a disputa do espaço público e as políticas urbanas e territoriais.
E em Portugal?
Que se saiba, ainda não temos um verdadeiro PMUS, e só Lisboa é que lançou o primeiro passo neste sentido com o MOVE Lisboa, em 2020: uma visão estratégica aprovada de forma consensual com metas para o futuro. O PMUS deverá dar seguimento ao MOVE, com marcos a cumprir as medidas a implementar dando prioridade aos modos mais universais, saudáveis e sustentáveis: primeiro a mobilidade ativa começando por andar a pé, seguido da bicicleta, depois o transporte público (com o ferroviário como prioritário), integrando a mobilidade partilhada e a logística e, por último, o transporte motorizado individual.
Depois desta discussão alargada é que faria sentido debater a gestão e as restrições dos modos mais problemáticos, começando sobretudo pelo automóvel, o que mais espaço ocupa, mais polui, mais emissões produz e mais sinistralidade causa. Nessa discussão também interessa informar e fomentar os modos que mais benefícios sociais e ambientais geram: andar a pé, bicicleta e o transporte público coletivo (e onde existe infraestrutura, em particular o ferroviário).
“A bicicleta tem uma crescente utilização em cidades por todo o mundo, com benefícios energéticos, ambientais e de saúde pública” afirma Bernardo Campos Pereira sobre as vantagens deste meio de transporte.
Em 2022 registaram-se 1691 acidentes de trotineta, um aumento de 78% em relação ao ano anterior. O uso de capacete não devia ser regulamentado?
Devíamos olhar para todos os números da sinistralidade rodoviária antes de tomar medidas ineficazes, como centrar a discussão no capacete, ou no seguro, que não demonstram qualquer eficácia na resolução do problema de fundo. Podem ter existido 1 691 incidentes associados a trotinetas, mas quais as causas? Havia outros veículos envolvidos? Qual é a maior causa da sinistralidade na via pública?
Entre janeiro e novembro de 2022 registaram-se 36 386 sinistros com automóveis e outros 8 978 com motociclos e ciclomotores. E a maior causa de ferimentos graves e mortos na via pública é causada pelos automóveis. Porque é que não discutimos esta sinistralidade, que é a verdadeira causa do perigo rodoviário? Se o que realmente se pretende é reduzir o perigo na via pública, a discussão devia começar pelas maiores causas, e só depois é que fará sentido apontar o dedo às trotinetas.
Quem usa as trotinetas devia conhecer as regras de trânsito ou não precisa de saber o código da estrada para circular?
As regras de trânsito foram desenvolvidas para regular os fluxos e o perigo gerado pelo tráfego motorizado e as trotinetas deviam respeitar estas normas, sem dúvida. Entretanto, quando as regras de trânsito ignoram alguns dos utilizadores da via pública e priorizam o tráfego motorizado (por ex. alguns sentidos únicos), estas mesmas podem incitar comportamentos de incumprimento. Mais uma vez, devia existir uma discussão mais aprofundada sobre o sistema de mobilidade, e em vez de este priorizar a utilização do automóvel, devia tomar em conta outros utilizadores da via pública, em particular quem anda a pé, mas também que se desloca de bicicleta e, claro, de trotineta.
Nem sempre circulam na ciclovia
Não há qualquer obrigação a circularem na ciclovia, e em Portugal há poucas ciclovias e na generalidade estas não estão ligadas em rede. A cidade com a mais extensa rede ciclável do país é Lisboa, mas este concelho só tem 163 km de ciclovias (e o concelho do Porto 35 km), quando as cidades europeias de dimensão equivalente apresentam uma média de 406 km de ciclovias. E Portugal é o país da União Europeia que menos investe per capita em infraestrutura ciclável: 0,30€/habitante, muito abaixo da média. Ainda temos um longo caminho a percorrer.
Quais as maiores violações à circulação na estrada?
As violações mais comuns e perigosas na via pública, aquelas que são responsáveis por centenas de mortes e milhares de ferimentos todos os anos nas estradas portuguesas, são os excessos de velocidade do tráfego motorizado. Como as trotinetas não conseguem circular acima dos 25 km/h, não são seguramente as maiores responsáveis pela sinistralidade, e se olharmos para os relatórios da ANSR está claro que os automóveis são os que mais mortos e feridos causam. É aí onde devíamos focar a atenção na redução de violações à circulação: velocidades excessivas, estacionamento abusivo, incumprimentos sistemáticos, etc.
Também se verifica o estacionamento indevido de trotinetas de operadoras privadas em algumas áreas urbanas; e claro que esta devia ser fiscalizada, penalizando as mesmas. Mas o estacionamento indevido de automóveis e camiões nos passeios é mais comum na generalidade do país e muito mais perigoso, pois são muito mais volumosos, ocultam a visibilidade dos peões, em particular crianças e pessoas com mobilidade reduzida, e obriga-os a andar na faixa de rodagem, colocando as pessoas em perigo. É curioso que os comportamentos abusivos de muitos automobilistas em Portugal não sejam um assunto diário nos noticiários portugueses…
Bernardo Campos Pereira sugere que, em cada quarteirão, se possa substiruir um lugar de estacionamento automóvel por estacionamente adequado a bicicletas e trotinetas.
Que alternativas de mobilidade em relação ao uso de trotinetas?
A trotineta é um modo de mobilidade 100% motorizado; acelera-se até aos 25 km/h, sem ter de realizar esforço físico, ao contrário dos modos de mobilidade ativa, andar a pé e utilizar a bicicleta. Mesmo a bicicleta elétrica obriga o utilizador a pedalar para ter assistência, cortando esta aos 25 km/h, portanto também associa a mobilidade a atividade física.
Considerando que no meio urbano a bicicleta, sendo um modo ativo, também é o modo mais rápido de todos para distâncias até 6 km, e a bicicleta elétrica para distâncias ainda maiores, pedalar parece ser uma alternativa mais saudável do que acelerar numa trotineta.
Por outro lado, ao exigir o esforço de quem utiliza a bicicleta, este modo poderá estar associado a uma maior segurança e perceção do meio onde se move.
Em termos de consumos energéticos, a bicicleta é o modo mais eficaz. Não é por acaso que para distâncias maiores, o complemento da bicicleta com o comboio é muito comum em vários países europeus, e em alguns locais o início do seu fomento está associado às crises energéticas de 1973 e 1980.
Aliás, a bicicleta tem uma crescente utilização em cidades por todo o mundo, com benefícios energéticos, ambientais e de saúde pública, mas também é um modo de mobilidade associado a mais segurança rodoviária.
Neste sentido, a intermodalidade, andar a pé para distâncias curtas, a bicicleta para distâncias inferiores a 6 km, os sistemas públicos de bicicletas partilhadas e os transportes públicos para distâncias maiores, são excelentes soluções de transporte que se complementam e deviam ser fomentados.
Como se pode melhorar a situação do estacionamento das trotinetas?
Por um lado, substituindo um lugar de estacionamento automóvel em cada quarteirão com uma área com 6 U-invertidos, permitirá estacionar pelo menos 12 bicicletas ou trotinetas particulares, e onde existem operadoras destes modos, substituindo outros lugares de automóveis pode permitir estacionar mais 12 (ou mais) bicicletas ou trotinetas dockless.
Em Lisboa há 5 operadoras de trotinetas. Deveria ser mais regulado este mercado?
A Câmara Municipal de Lisboa tem trabalhado com as operadoras para regular deficiências, mas ainda é muito cedo para avaliar os impactos. São medidas recentes que requerem monitorização e algum tempo para realizar uma avaliação adequada. Há outros municípios que seguiram outros modelos e que deviam ser analisados também, nem que seja para aprender com os erros. Por exemplo, no concelho de Cascais, as bicicletas públicas Mobicascais desapareceram das estações que tinham por todo o concelho, ficando reduzidas a uns poucos quiosques turísticos, e agora só existem trotinetas de operadoras privadas nas estações que antes tinham bicicletas. Qual o benefício? Em Oeiras, a Parques Tejo colocou uma série de pontos de trotinetas dockless nos passeios em vez de substituir lugares de estacionamento automóvel, o que tem agravado as acessibilidades pedonais em muitos locais. Estas medidas melhoram o sistema de mobilidade do concelho? Têm contribuído para a transição modal do automóvel para a micromobilidade? Estes concelhos estão a monitorizar os impactos das medidas que foram tomadas?
Com um PMUS desenvolvido de forma participada com os cidadãos, em forma de ciclo de políticas a assumir e implementar, uma monitorização a realizar, seria expectável ver estes problemas abordados e resolvidos de forma mais consequente.