A urgente caminhada apressada vai continuar?

Durante quase uma semana, Lisboa foi palco da Jornada Mundial da Juventude que reuniu mais de milhão e quinhentos mil (1.500.000) católicos, principalmente jovens, de quase todos os países do mundo (a exceção foi as maldivas (qual será a razão?)), sob o lema “Maria, levantou-se e partiu apressadamente” (Lc 1, 39).

O Papa Francisco abordou esta passagem bíblica durante a vigília realizada no sábado dizendo que Maria quando soube da gravidez da sua prima Santa Isabel levantou-se e saiu apressadamente para ir ter com ela, mesmo estando também ela grávida, numa condição que requeria mais cuidados e precauções de saúde, mas foi por amor. O Santo Padre abordou esse amor com base na alegria. Os Papas são sempre pautados pela sua sapiência, sobretudo o Papa Francisco, mas neste discurso não foi totalmente explícito sobre o significado deste ato de amor e sobre a importância da alegria, pelo menos para os mais incautos. Foi um ato de amor pela alegria do convívio ou pela alegria do desejo de ajudar o outro? Ajudar, não no limite da desgraça, mas na soma e na evolução das qualidades.

Num mundo, onde muitas pessoas têm tantas e tão variadas coisas materiais e imateriais e estão rodeados de família e amigos, existe simultaneamente uma carência enorme de abraços e beijos. Abraçar e beijar não é em muitos casos dar amor, é somente suprimir carências de afeto. Amor é muito mais. É estar lá, já antes do outro estar carente. É estar lá, mesmo à distância para evitar que o outro se perca, que outro se desvie do melhor caminho. É estar lá, para com o outro nos elevarmos na consciência e na dignidade de ambos.

O Papa Francisco foi, durante a Jornada, assertivo em todas as suas ações, em todos os seus discursos, lidando de forma estoica com as condições físicas que os seus 86 anos de idade lhe impõem e deixando a impressão de um homem só ou pouco acompanhado e pouco interpretado pelas cúpulas eclesiásticas, incluindo a portuguesa (existisse um milhar de párocos de firmeza oratória semelhante em Portugal e não tínhamos tanta igreja e capela fechada ou dessacralizada como temos). No entanto, ouviu-se como de costume muito perdão, muita caridade, muita misericórdia, e tão pouca antecipação, tão pouca preparação, tão pouca antevisão, tão pouca prevenção, tão pouca precaução, pois é isso que é estar em vigília, étimo hoje tão ligado somente à meditação conjunta.

Não obstante, a Jornada Mundial da Juventude trouxe à sociedade as incoerências, as negações das desgraças, as confrontações sempre pavorosas para os conservadores atávicos com a necessidade urgente de uma caminhada apressada para as reformas eclesiásticas necessárias. E trouxe sobretudo esperança, esse elemento intangível inexplicável pela ciência que une todas as religiões. A esperança, melhor dizendo a fé numa humanidade e num mundo melhor. Ora, se os mais novos, que são o futuro têm fé, por que razão os mais antigos não sentirão a sua fé reforçada.

A Jornada teve uma escala humana de dimensão extraordinária, não fosse Portugal um país em que 90 % da população é católica, que foi fundado e cresceu enquanto reino e Estado numa égide de reino com religião e credo oficiais cristão e católico, respetivamente, e que no meado dos seus mais de 800 anos de existência, viveu três séculos de prática religiosa obrigatória e exclusivamente católica, (demonstrando o que de pior a Igreja Católica e o Catolicismo tem, ou seja, as fações ultra conservadoras que não toleram os que pensam e sentem de forma diferente). Tais circunstâncias levam a que o catolicismo quase seja um elemento identificador da nacionalidade portuguesa (enquanto identidade cultural), situação ainda a corroborar ou a refutar pelos historiadores, principalmente, os medievalistas.

O certo é que Lisboa foi uma cidade repleta de jovens sadios vindos de todas as latitudes e longitudes, mostrando a mundividência do catolicismo. Foi interessantíssimo perceber como as igrejas da cidade estavam praticamente todas abertas e cheias de crentes, quando muitas delas passam a maioria dos dias fechadas, mesmo aquando de domingos ou dias de comemoração católica.

A cidade tinha as limitações normais, antecipadas, anunciadas e ajustadas a um acontecimento desta natureza. O Santo Padre recebeu os “banhos” de multidão a que está acostumado receber por onde passa. De resto, esta Jornada Mundial da Juventude não se insere nas cinco jornadas com mais peregrinos ou participantes.

Os católicos nacionais comuns de maior idade ligaram e praticaram pouco ou nada da mensagem de Cristo ou papal e aprontaram-se a querer ver em carne e osso, um humano fisiologicamente igual a todos nós, achando que a sua presença trazia benefícios medicinais e espirituais (estes últimos talvez), esquecendo que Cristo e Deus não estão no Papa, estão entre nós.

Os cidadãos menos crentes e residentes na Área Metropolitana de Lisboa foram, como de costume, mais egoístas que os verdadeiros agnósticos e ateus. E queixaram-se da falta de transportes coletivos, da dificuldade de acessos, isto quando alguns até tiveram direito a tolerância de ponto em dois dias da semana. Andam um pouco afastados de Cristo e de Deus e muito carentes (em alguns casos) mas têm fé em reencontrar o caminho da felicidade. Em suma, a cidade teve os problemas de mobilidade pouco ou nada diferentes do habitual. Claro que há problemas, claro que têm de ser resolvidos, mas não culpemos a Jornada Mundial da Juventude por problemas que não foram exponenciados por esta experiência.

A comunicação social televisiva (principalmente) foi pródiga no sensacionalismo e na incoerência moral (seja lá isso o que for). A mesma comunicação social que de forma sensacionalista defende as minorias, voltou a não vestir o fato do laicismo que o nosso país adquiriu a 5 de outubro de 1910 e nunca ou muito raramente o tirou do armário. O mesmo é dizer que não se preocupou com as minorias religiosas e passou a semana a divinizar o que já se proclama divino. Termos subjetivos e elogiosos como fantástico, belo, magnânimo e perfeito (que não é subjetivo, mas é muito mais elogioso do que acertadamente objetivo) foram uma constante. A contrapor este êxtase, mantiveram o sensacionalismo aproveitando cada pequeno incidente, alguns trágicos é certo, como um prenúncio do cataclismo. Desde uma peregrina de 62 anos que faleceu, a um jovem que ficou gravemente ferido ao mergulhar e banhar-se no rio Tejo, passando por uma jovem peregrina que foi atropelada com a fuga imediata do condutor ou a já corriqueira mostra das imagens caóticas nas estações do metro e das paragens de autocarro. Recordemos que a Jornada trouxe à cidade 1.500.000 pessoas. Existem países desenvolvidos que não têm esta população e onde todos os dias acontecem acidentes.

O retorno financeiro para os agentes comerciais da cidade foi na esmagadora maioria, uma quebra de receitas.

Mas voltemos às questões religiosas e ao lema da Jornada. Durante esta Jornada Mundial da Juventude houve de tudo. A Igreja Católica mostrou a muitos dos seus crentes, mesmo aos não facciosos, que o catolicismo é apenas mais um credo, mais uma forma de ver o mundo e a humanidade, e não a melhor forma de ver o mundo e que a prioridade não é a conversão, é a convivência com o diferente. Para tal integrou na Jornada um evento organizado pela Universidade de Lisboa que consistiu em plantar árvores no Jardim Botânico Tropical. Cada árvore foi plantada por um jovem de credo e religião diferentes. Nesta iniciativa estiveram jovens islâmicos, judeus e hindus, pelo menos, mostrando a multireligiosidade a que os lisboetas tantas vezes apregoam (talvez abusivamente) de multiculturalidade. A mensagem foi de paz, de fraternidade, de respeito, de convivência, mas também de ecologia, como desde há umas décadas se diz. Foi neste último capítulo que os jovens católicos, muitos deles provavelmente ativistas climáticos, reprovaram claramente ao deixar o Parque Tejo no fim da eucaristia dominical e última cerimónia com presença papal, substancialmente sujo e poluído com restos de lixo. Muito há ainda a fazer para os jovens perceberem o que é a responsabilidade e perceberem que ser adulto exige maturidade e que ser melhor é ser coerente. Eu bem sei que é difícil. Eu próprio também pertenço a essa geração que no caso ocidental são os filhos da geração baby boom, e também eu, fui mimado pelos meus avós a ponto de quando partia uma jarra, as minhas avós quase dizerem que a culpa era da jarra. Mas temos de ser algo mais do que meninos e meninas bonitas que temos direito a gritar, exigir e protestar. Temos de ser os agentes da mudança, como Jesus Cristo foi e alude os outros a serem. Como disse o Papa Francisco na despedida (talvez de forma um pouco perigosa no campo interpretativo), não estamos cá para ser servidos, estamos para servir (eu acrescentaria desde que dignamente e desde que sejamos respeitados).

Também na zona de Belém, mais concretamente no Parque Vasco da Gama estava o Parque do Perdão com inúmeros confessionários construídos por reclusos que merecem como todos os outros ser perdoados pelos pecados cometidos. Foi nesta zona que um conjunto de jovens ao fazerem o apelo a esta situação, foram interpelados e ofendidos por outros jovens católicos que acham que os criminosos não têm direito a perdão, nem ajuda. Antes, devem agonizar na sua mágoa e ficar perdidos na sua incompreensão. Tal ato, veio mostrar que ainda se formam católicos, sobretudo portugueses, no princípio de que existem pessoas de primeira e pessoas de segunda classes e só os de primeira classe merecem perdão. São jovens que vivem na anacronia dos tempos, pois até já o direito civil estabeleceu o fim das classes (sociais) na Europa com as revoluções liberais no final do século XVIII e no início do século XIX.

Outra das incoerências da fé deu-se ainda antes da Jornada Mundial da Juventude ter chegado a Lisboa. Uma semana antes da Jornada, a Católica Lisbon Business and Economics e a Católica Porto Business School, divulgavam nas suas redes sociais digitais a apresentação de uma formação que dá pelo nome de Programa Executivo de Gestão do Luxo. Ora, o Papa Francisco, logo no seu segundo dia da presença em Lisboa visitou e deu uma palestra na Universidade Católica em Lisboa e no terceiro dia visitou o bairro da Serafina para ver as condições de pobreza em que alguns lisboetas ainda vivem. Como se pode combater a pobreza, gerindo o luxo? E deve ser uma instituição de ensino universitário gerida pelos católicos a ensinar como se gere esse excedente ostentativo, a que chamamos luxo?

Por falar em luxo, lembro-me logo do pecado mortal da luxúria. Eu bem sei que as palavras não são sinónimas, embora estranhamente luxúria partilhe a origem do étimo latino com luxo e não com a sinónima lascívia. Melhor dizendo, não podiam faltar os assuntos sexuais, tão temerosos, tão imundos e tão promíscuos que devem ficar fechados no íntimo de cada um e só devem ser colocados em prática aquando da necessidade de procriação humana, ignorando tais estímulos enquanto necessidade biológica, como esses terríveis cientistas por esse mundo fora mostram e explicam. Alguém sabe ao certo o que Jesus Cristo disse, pensou ou agiu sobre a atividade sexual? Nem sequer sabemos, como certos teólogos como Santo Agostinho, que até aos 33 anos teve uma vida sexual provavelmente muito mais ativa e variada que muitos de nós, reescreveram partes do evangelho para a doutrina ser o que é. O que sabemos é que houve uma missa realizada para a comunidade LGBT que foi invadida e interrompida por um grupo de jovens católicos fanáticos. O que sabemos é que um grupo de transsexuais e transgéneros foi ofendido por um grupo de participantes na Jornada Mundial da Juventude. O que sabemos é que a Igreja Católica Portuguesa continua a ter muita dificuldade em assumir o escândalo da pedofilia, tirando honrosas exceções como o bispo emérito das Forças Armadas e segurança D. Januário Torgal Mendes Ferreira. O que sabemos é que o Papa Francisco já percebeu que a Igreja Católica e os católicos têm de se levantar (como o espetáculo da vigília de sábado incitou nos céus de Lisboa) e caminhar apressadamente, ainda que não ansiosamente, como diz, e reformar toda esta mentalidade arcaica (não confundir com tradicionalismo) que ainda nos rodeia.

E eu, se me permitem, acho que a esperança está no Papa, nas pessoas, mas não no clero português com todo o respeito pelos seus representantes. E eu tenho a certeza de que sou católico e que quero continuar a ser católico, não para ler as mnemónicas orações libertadoras espiritualmente para muitos, e a viva-voz citadas coletivamente, não só, mas principalmente aos domingos de manhã (com todo o respeito pelos meus concrentes); mas principalmente para colocar em prática (na dimensão humilde que possuo) a mensagem que Jesus Cristo deixou há dois milénios atrás.

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