Simone Tulumello, investigador no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, considera que estes diplomas são um ”tentar fechar a gaiola depois da besta ter fugido.” Acrescenta ainda que a “existência de um travão ao crescimento da renda dos novos contratos é muito importante do ponto de vista simbólico porque, depois de muitas décadas, se volta a pôr na mesa uma medida de controlo dos valores das rendas.” Recorda que há pelo menos uma década que tanto os movimentos sociais como a academia pediam este tipo de medidas. “É também muito importante porque estão a assumir que, afinal, é possível controlar”, começa por lembrar.
Não obstante, salienta que muitas das medidas teriam tido um impacto muito mais relevante há 5 ou 6 anos, altura em que foi criada a Secretaria de Estado da Habitação: “se nessa época tivessem sido aprovadas medidas como estas, poderiam ter tido um impacto significativo”. “O aspeto positivo é que finalmente mexem em muitas coisas ao mesmo tempo. Mas não é suficiente. O problema não é onde vão mexer, mas sim como vão mexer”, salienta.
O polémico arrendamento coercivo
O arrendamento coercivo, uma das medidas que mais controvérsia tem gerado, consiste no Estado, invocando interesse público, arrendar edifícios devolutos em troca do pagamento de uma renda ao proprietário. A classificação de devoluto cabe ao município e a consequência é o agravamento do IMI. Sempre que tal se verifique, o município deve comunicar ao proprietário para a respetiva
utilização. Em caso de recusa ou ausência de resposta do proprietário, o município pode proceder ao arrendamento forçado. Em Lisboa, existem 6.444, no país são 10.998. Casas de férias, casas de emigrantes e de pessoas deslocadas por razões profissionais, de saúde ou formativas não são consideradas devolutas para o efeito.
Em entrevista à SIC, António Costa diz que “não se trata de expropriar, de um esbulho, trata-se de pagar uma renda justa”, acrescentando que a medida “assenta em dois conceitos jurídicos que estão consolidados e são pacíficos: a de prédio devoluto, que está definido para efeitos de agravamento da cobrança do IMI desde 2006 (…) e a do arrendamento forçado”. “Estamos a dar um âmbito mais alargado a dois mecanismos que já existem. Não creio ser uma leitura abusiva”, esclarece o primeiro-ministro.
Opinião discordante tem o advogado Ricardo Maia Magalhães. À TejoMag explica que “comparar estas medidas com o arrendamento forçado atualmente presente na nossa legislação urbanística mais não passa do que um exercício de pura desonestidade intelectual, uma vez que o espírito e objetivo de tal instrumento jurídico, na perspetiva em que se encontra hoje legislado, apenas visa salvaguardar investimentos realizados pelos Municípios em favor dos particulares e que estes, por algum motivo, entendam não reembolsar”, começa por esclarecer.
Além disso, considera que se levantam “severas questões de constitucionalidade, quer de um ponto de vista do respeito pelo direito fundamental à propriedade privada, quer na própria ótica do princípio constitucional da igualdade. Por um lado, a circunstância do Estado passar a dispor do património privado dos cidadãos contra a sua vontade parece colidir com o seu direito fundamental a gozar dessa mesma propriedade, em moldes que certamente ultrapassam a componente social da propriedade privada”, prossegue.
“Por outro lado, o simples facto de determinadas medidas apenas serem aplicáveis aos imóveis situados nos grandes núcleos urbanos desagua numa inevitável discriminação dos respetivos proprietários face aos demais cidadãos que tenham optado por realizar os mesmos investimentos noutras zonas do país – sem que se possa argumentar em favor de qualquer motivo que justifique essa discrepância do ponto de vista do cidadão”, conclui.
Ricardo Maia Magalhães é sócio responsável pelo Departamento de Contratação Pública e Autarquias Locais na PA Advogados. / Direitos reservados.
Benefícios fiscais
Foram anunciadas várias políticas fiscais destinadas a melhorar o mercado de arrendamento e de habitação. A primeira diz respeito ao desagravamento muito significativo para todos os que coloquem casas no arrendamento habitacional. Quanto maior for a duração do contrato, maior é a descida da taxa de IRS. Em contratos de até 5 anos, desce 28% para 25%; entre 5 e 10 anos desce dos 23% para os 15%; dos 14% para 10% entre 10 e 20 anos. Nos contratos superiores a 20 anos a taxa será de 5%, uma descida para metade.
Além disso, os senhorios com casas com rendas antigas (até 1990), ficam isentos de IRS e IMI e vão ser compensados financeiramente. Para aqueles que destinam ou constroem imóveis para arrendamento acessível, em que havia isenção fiscal, estão agora também isentos de IMI. Aqueles que celebrem contratos de desenvolvimento habitacional diretamente com o Estado ficam ainda isentos de IMT, imposto de selo e IVA.
“Medida para estabilizar e não baixar os valores”
Os novos contratos de arrendamento de imóveis que tenham estado no mercado nos últimos 5 anos ficam sujeitos a um teto máximo de aumento de 2% face à renda anterior. O programa prevê ainda a isenção de mais-valias na venda de imóveis com a condição de que o valor se destine ao pagamento do empréstimo da casa de habitação própria e permanente do proprietário ou dos seus descendentes. Está também prevista a isenção de IRS para mais-valias de vendas ao Estado e entre particulares em que o valor da venda seja reinvestido em imóveis destinados a habitação acessível.
Porém, Simone considera que chegam demasiado tarde. “Como as rendas já são demasiado altas, claramente incomportáveis para quem vive e trabalha em Portugal, já não servem. Em certa medida, esta é uma medida paradoxal. Isto porque quem, até agora, manteve as rendas relativamente mais baixas, é mais penalizado. Esta medida não vai ter o impacto que é preciso: baixar os valores das rendas”. É uma medida cujo propósito é “estabilizar o mercado” e não “baixar os valores”, alerta.
Combate à especulação
Uma outra medida que tem em vista o combate à especulação assenta na redução dos benefícios fiscais associados à revenda de imóveis para os pôr no mercado, e da renda justa, uma medida de curto prazo para limitar o aumento das rendas de novos contratos, salvaguardando os contactos que estão até ao limite do programa de apoio ao arrendamento.
Foi também decretado o fim dos vistos gold. Para António Costa, “nada justifica” a existência deste regime especial quando “89% desse investimento foi puramente imobiliário”. De acordo com o primeiro-ministro, das 11.758 autorizações de residências concedidas ao abrigo deste regime ao longo de 11 anos apenas 22 resultaram na criação de emprego.
“Os vistos Gold, mesmo que não tivessem efeitos sobre a habitação, seriam uma porcaria”
O especialista em Habitação concorda e enaltece a medida. “Não é só uma questão da habitação. Os vistos Gold, mesmo que não tivessem efeitos sobre a habitação seriam uma porcaria. Estamos a falar de um regime privilegiado de obtenção de autorização de residência através da compra. É uma boa medida, mas duvido que tenha um grande impacto”, salienta.
Ainda assim, destaca ser difícil prever o real impacto. “Um dos problemas é que nunca tivemos dados sobre onde eram concedidos os vistos. A perceção é que tiveram um impacto bastante significativo sobre uma certa faixa do mercado. Teve um impacto muito grande especialmente nos primeiros anos, mas agora estava a abrandar”, acrescenta.
Simone Tulumello defende que o controlo das rendas é uma das medidas que pode ter impacto efetivo na regulação do mercado da habitação.
Incentivo ao fim do Alojamento Local
Foi anunciada uma taxa extraordinária – Contribuição Especial do Alojamento Local – de 20% para apartamentos em municípios que não sejam de baixa densidade. Os titulares de alojamento local que decidam converter o AL em arrendamento estável até final de 2024, vão ter isenção de IRS até pelo menos 2030, explicou o primeiro-ministro. António Costa anunciou também a suspensão de novas licenças de AL até 31 de dezembro de 2030 para zonas de pressão urbanística. “O alojamento local tem tido um crescimento significativo”, justifica o primeiro-ministro, salientando que, neste momento, existem cerca de 110 mil habitações alocadas ao AL. “Só este ano, entre janeiro e fevereiro, mais 2.017 habitações foram alocadas a esta atividade económica”, conclui.
Para Simone, “o AL como fenómeno é uma das componentes da crise, sobretudo nas áreas centrais. Houve claramente uma substituição de dezenas de milhares de unidades habitacionais por unidades de AL”. Porém, alerta que é fundamental traçar uma diferenciação entre proprietários.
“Não é uma classe unitária. O que aconteceu nos últimos 6/7 anos é uma progressiva concentração de propriedade. Inicialmente, eram sobretudo pequenas famílias que tinham uma ou duas casas, que conseguiram resistir à crise através do AL. Mas, atualmente, já é muito marginal. Agora, é completamente profissionalizado. Há um estudo recente que mostra como grande parte da habitação que foi reabilitada nos últimos anos são para o AL”. “Nada neste pacote de medidas distingue entre tipos de proprietários. Para uma empresa que compra um prédio para AL não deveria haver qualquer estímulo, deveria haver o fim destas unidades. Para além de casas retiradas do mercado, é uma competição desleal para com os hotéis”, lamenta.
A medida que ficou a faltar
Para o investigador, há uma medida que deveria constar do pacote e que poderia, efetivamente, ter um impacto maior do que aquelas anunciadas. “Controlo de rendas“, aponta. “Acho que não há alternativa. Para mim a única política que pode ter um impacto a curto prazo. Pôr tectos aos valores das rendas”. Sublinha que esta seria uma medida que teria de ter em conta inúmeros fatores: considerar as diferentes localizações, as condições em que estão os apartamentos, se houve investimento ou não, entre outros. “Para voltar a garantir que o preço da habitação seja compatível com os rendimentos, não me parece que haja alternativa. Tudo o resto são formas de adiar o problema”, alerta.
Por fim, recorda que “Construir mais não resolve as questões de habitação. O mercado de habitação não funciona de acordo com aquele mito oferta e procura”.