Mónica Ferro: “Mesmo no meio de uma crise as mulheres continuam a dar à luz”

A atenção da ONU está virada para as mulheres e o nascimento de bebés, “a vida a acontecer”, no meio dos escombros, como foi no caso da crise humanitária na Síria e Turquia,  e ainda na Guerra da Ucrânia.

O tema deste ano da ONU para o Dia da Mulher é o impacto da tecnologia e a violência na mulher, as Nações Unidas denunciam esta questão  na Campanha Body Right, uma alusão direta à expressão de copy right. “Há um uso abusivo da imagem do nosso corpo, que é muito menos protegida, do ponto de vista corporativo, do que uma canção e uma obra de arte”, a dirigente da ONU na Europa diz ser uma área nova para a qual é preciso alertar.

De acordo com um estudo publicado em 2020, 85% das mulheres com acesso à internet relataram ter testemunhado violência online. Nove em cada 10 mulheres (92%) relatam que esta violência prejudica sua sensação de bem-estar e mais de um terço (35%) experimentou problemas de saúde mental, segundo dados da ONU.

Tema da ONU deste ano para o dia da mulher  designa-se de digital technology for gender equality. Como querem promover a equidade através da tecnologia?
Todos os anos a ONU escolhe um tema para centrar a conversa em torno dos direitos e participação das mulheres, e este tema permite falar muito dos direitos das mulheres, uma ferramenta de inclusão de participação, mas é uma área em que se abrem novas violências. É uma forma de sinalizar um alerta para que os espaços digitais protejam a participação, sejam o mais inclusivos possível, mas também com a consciência que o impacto em homens e mulheres é sempre distinto. Dou como exemplo violência com base no género facilitada na tecnologia.

Estão a pensar em que países?
Pensamos em todos. A tecnologia permite violência, os dados mostram que 85% das mulheres sentem que de alguma forma já foram alvo da tecnologia, todo o cyber stocking a facilidade em gerar mensagens de ódio de forma quase anónima no espaço digital

Pode concretizar? Há mulheres que vivem em contextos complexos, a maioria destas mulheres não têm acesso ao mundo digital
É uma questão que subjaz a todo o trabalho. A tecnologia tem ajudado a trazer muita gente para o mundo do trabalho, mas sabemos que há um grande hiato, sabemos que há milhões de pessoas que não têm acesso ao mundo digital, pessoas espalhadas pelo mundo, não é um exclusivo de determinadas áreas geográficas. Lançamos uma campanha Body right, é uma alusão direta à expressão de copy right. Porque é que uma imagem do nosso corpo é menos protegida on-line do que uma canção? Esse tema dá pano para mangas. Está espalhado na cultura…Tem de ser alertado, porque é que as pessoas se sentem tão livres de partilhar imagens, até como forma de sanção quando há um fim de um relacionamento, casos conhecidos. Há um uso abusivo da imagem do
nosso corpo, que é muito menos protegida, do ponto de vista corporativo, do ponto de vista das plataformas digitais, do que uma canção e uma obra de arte, é uma área nova.

Sobre o balanço dos direitos das mulheres em 2022, um ano difícil começando pela Guerra da Ucrânia. Cerca de 4, 8 milhões de refugiados na Europa.  Como acompanharam as mulheres refugiadas na guerra da Ucrânia?
Há uma perceção cada vez mais transversal e aceite que as crises afetam sempre de uma forma desproporcional as mulheres. Não só porque elas desempenham o papel de cuidadoras, na esmagadora maioria dos países, e numa percentagem que as torna vulneráveis em todas as crises, não só porque estão mais expostas a violência sexual durante o conflito, mas seja qual for o contexto de crise as mulheres são particularmente afetadas.

Como é que apoiam as mulheres que ficam sozinhas com os filhos?
A nossa resposta é com a saúde sexual reprodutiva. Ou seja, a nossa resposta na Ucrânia, e agora na Turquia e na Síria é tentar mapear imediatamente através de estimativas, como trabalhamos nesta área nestes muitos países há muito tempo que temos modelos preditivos, que nos permitem estimar nesses países quantas mulheres existem em idade reprodutiva, quantas mulheres estão grávidas, quantas mulheres vão dar à luz nos próximos dias, e nas próximas semanas. O nosso esforço é nosso
sentido de proteger as mulheres nessas zonas da violência sexual, de tráfico  humano, garantindo as necessidades do ponto de vista da higiene com os kits de dignidade, mas também com os cuidados de saúde sexual reprodutiva e cuidados de saúde materna. Durante muito tempo as prioridades eram o abrigo e alimentação, mas agora dizemos “atenção há mulheres grávidas a ter bebés

Tiveram essa preocupação agora?

Sempre.  Mas agora o kit contém desde uma escova e pasta de dentes a produtos de higiene menstrual, porque as mulheres continuam a ter o período…

As mulheres continuam a ser mulheres mesmo em tempo de guerra
Há um esforço por responder a estas questões. Nestes grandes movimentos de população percebemos que era preciso acelerar este tipo de respostas. Temos de trabalhar na prevenção e respostas.

Entrámos neste ano com o terramoto na Turquia e na Síria. Que perspectivas se podem dar a pessoas que estão em condições extremas de vida?
Trabalhamos em 130 países, temos acordos com os governos, e parceiros e temos programas coordenados com esses países. Mesmo em contextos em que as Nações Unidas têm projetos de desenvolvimento há fenómenos como este que desencadeiam uma resposta humanitária. Todo o sistema está muito preparado, para no imediato ter de responder
a crises destas. A mensagem e serviços que levamos para o terreno são no sentido de mostrar às pessoas que as Nações Unidas estão lá, vão onde é preciso, têm um conjunto de serviços dividido por agências, cada uma desempenha uma parte do trabalho que há para fazer, coordenamos para que não haja sobreposições, mas a mensagem tem sido de que há uma solidariedade internacional que tem sido desencadeada antes, durante e depois destas grandes crises. O mundo está convosco estamos aqui para assistir numa altura difícil, em que a resposta é humanitária, mas fazemos de forma a que as sociedades fiquem mais resilientes, no sentido de que
possam de forma mais rápida e eficaz  fazer face a crises futuras. E isso faz com que haja um nexo entre os projetos em desenvolvimento. O objetivo é que as sociedades fiquem mais fortes depois de um evento destes. O nosso foco é sempre a área saúde materna, a área da saúde sexual.

E a saúde materna continua sempre a acontecer mesmo no meio dos escombros…
A vida continua a acontecer. A diretora executiva Natália Cannan usa a expressão “Mesmo no meio de uma crise as mulheres continuam a dar à luz”. É preciso garantir que mesmo nestas crises há este serviço humanitário, não é algo que nos lembramos depois enquanto estamos no terreno. Esta é uma área prioritária para nós, mas não só, trabalhamos com todos os grupos em situação de vulnerabilidade, garantimos este tipo de direitos às mulheres, aos jovens, às pessoas portadoras de deficiência, às crianças, aos migrantes, aos idosos, à comunidade LGBTQI. Nós tentamos mostrar que somos uma agência que lida com fenómenos populacionais e procuramos perceber: quem são as pessoas, onde estão as pessoas que estão em situação vulnerável. A grande agenda 20-30 tem
como mantra não deixar ninguém para trás.

A situação dos direitos das mulheres é gritante um pouco por todo o mundo. No Irão uma jovem foi assassinada em setembro por não usar o véu islâmico. O que têm feito para consciencializar o poder no Irão sobre o direito das mulheres?
Há um grande esforço de dizer aos estados que os direitos humanos são universais, o facto de nascer num determinado país não pode limitar os nossos direitos humanos fundamentais, como o direito à educação, o direito à liberdade, o direito à expressão. Estou em Genebra onde está o conselho de direitos humanos e todos os mecanismos internacionais de direitos humanos. Os direitos humanos são universais, todos os seres humanos nascem com um conjunto consagrado e protegido de direitos humanos, são indivisíveis, e inalienáveis, ninguém pode retirar os direitos com que eu nasci pela minha circunstância geográfica. Tem havido uma condenação muito grande por parte da comunidade internacional pelas várias violações humanas em vários países, as Nações Unidas têm vários mecanismos que têm desencadeado especificamente para lidar com situações dessas. Há uma mensagem muito clara que estamos vigilantes, para trabalhar com os estados no sentido de repor os direitos das mulheres e são esforços
muitas vezes frustrantes.

Nestes casos os esforços são diminutos, no caso do Irão e Afeganistão
Há muitos contextos em que os direitos humanos ainda têm de lidar com muitas barreiras. A importância da educação, de podcasts como este serve um propósito fundamental:  o mundo é muito assimétrico, há partes do mundo que as desigualdades e a discriminação são tão evidentes, não podemos não ter uma palavra a dizer. Esta ideia da consciência global ensinada nas escolas, mas que tão construída pela comunicação social e estes veículos de comunicação, são aliados fundamentais. Preocupa-me o que acontece com qualquer pessoa em qualquer parte do mundo e tenho um papel a desempenhar. Às vezes é muito frustrante, porque demora muito tempo a provocar uma mudança, falamos de normas sociais que fazem parte de um grupo. E ficamos muito assoberbados com o que significa mudar normas sociais.

Mónica Ferro

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