“Nós éramos culpados pela nossa deficiência”, disse João, uma das vozes na manifestação contra a JMJ

Uma hora depois do começo da via-sacra, esta sexta-feira, no Parque Eduardo VII, uma centena de jovens concentrou-se em semicírculo no espaço em frente à Capela de Nossa Senhora da Saúde. Do outro lado da rua, no centro da Praça Martim Moniz, no grande palco, eram projetadas imagens do Papa Francisco. Ali vagueavam diversos peregrinos atraídos pelas várias tendas do Parque Cristonautas, um evento que aliou a tecnologia e a fé.

De microfone em riste, remetidos à sombra dessas atividades integradas na programação oficial Jornadas Mundiais da Juventude, os manifestantes da concentração Sem Papas na Língua partilhavam em tom de revolta as suas inquietações e testemunhos pessoais. Histórias sobre a transsexualidade, o racismo, a violência policial e o machismo uniram os presentes que aparentavam ter entre os 18 e 30 anos. Os cartazes que também refletiam essas mensagens: ‘o amor é mais forte que a tradição’, ‘tratem Portugal como se tivesse cá o Papa o ano todo’ e ‘4815 + 40: Quantos mais precisam que sejam abusados?’.

A vida em instituições católicas

Um jovem com paralisia cerebral, de 26 anos, João Peres, misturado entre a multidão desde o início da concentração, com um cartaz em punho, resolveu ir ao microfone. O que o inquietou ultrapassa os temas ali debatidos, por ser um assunto a que a poucos lembra: as pessoas com deficiência que se encontram em instituições de cariz católico.

Tinha 12 anos quando percebeu, mais por motivos “emocionais” do que “racionais”, que a Santa Casa da Misericórdia, instituição que o acolhia durante o dia enquanto a sua mãe estava a trabalhar, lhe denegria a autoestima, usando-o para criar uma imagem de uma igreja que “aparece ao lado dos pobres e oprimidos”. A sua mãe católica, por tradição, compreendeu e respeitou a vontade do filho em querer sair.

João frequentou a Santa Casa desde os seis meses de idade. Lembra-se de ir todos os domingos à missa, de ficar enfadado, de achar que nada daquilo fazia sentido. E principalmente “de ser o boneco, o deficiente que eles queriam que estivesse lá”. “A Igreja dá-me como uma pessoa doente, pecadora. Havia uma imposição de uma maneira de viver. Da religião, da reza, da culpa. Como se nós fossemos pecadores por sermos assim. Fossemos menos pessoas, menos iguais aos outros. Havia uma ideia de que nós éramos culpados pela nossa deficiência. E essa visão está muito enraizada na forma como a sociedade olha para as pessoas com deficiência”.

Atualmente, com um mestrado em física e empregado, João vive a vida com plena autonomia porque a sua deficiência o permite. O que considera uma “sorte”. Colegas que têm deficiências mais limitativas a nível motor, que estão em cadeiras de rodas, que são cegos, mudos “são menosprezadas e tidas como um trofeu de bondade para a Igreja”. Colocados em instituições católicas contra a sua vontade, são presos a camas, é-lhes retirada a liberdade e o direito a dizer não, conta.

Aos olhos de um protestante

Aos que lá se encontravam a pregar contra a Igreja Católica, chegavam outros, curiosos, que acabavam por permanecer até aos discursos acabarem. Duarte, de 24 anos, um dos organizadores das atividades do Parque dos Cristonautas, superou a perplexidade a que se detinham os participantes das Jornadas que observavam o acontecimento da Praça Martim Moniz e atravessou a rua. “Venho na expectativa de ouvir”, disse. “Eu sinto que estas pessoas sofreram e continuam a sofrer de uma forma que é genuína e com a qual eu tenho compaixão”.

Duarte não faz parte da comunidade católica. Apesar da sua participação nas Jornadas Mundiais da Juventude e da sua participação na organização do evento na Praça, identifica-se como cristão protestante que frequenta a Igreja Evangélica Baptista de Oeiras. Criado como católico em Portugal, encontrou a fé na Dinamarca quando foi acolhido como estudante de intercâmbio numa comunidade protestante. “Lá o Evangelho tornou-se real para mim”. São esses escritos que unem tanto católicos como protestantes na irmandade da fé. No entanto, há diferenças taxadoras. Uma delas é o modo com que os fiéis protestantes e os católicos percecionariam aquela manifestação.

Um dos pilares pelo qual Duarte se rege é “nenhum de nós é bom o suficiente para merecer o amor de Deus”. E esse é um sentimento que ali é prevalente, diz. Um católico ao afirmar que o amor de Deus chega a todos sem contrapartida coloca em desigualdade aqueles manifestantes, pois “o que a igreja diz oficialmente e aquilo que os fiéis fazem é diferente”, explica. “Aqui nas jornadas vê-se isso. Pessoas com comportamentos estúpidos para com a comunidade LGBT, mas também tens quem ouça e sofra com eles”.

Cruz queimada e peregrinos provocadores

Antes do pôr do sol, um rapaz vestido com um hábito iniciou uma recitação teatral de passagens da bíblia alertando para a violência perpetuada pela Igreja ao longo dos séculos. À luz de um flare vermelho, falou da colonização e da perseguição às “bruxas” feita pela Inquisição. Dentro do semicírculo, perto da bancada, via-se uma bandeira LGBT com um símbolo anarquista e algumas referências ao marxismo. Os organizadores do protesto não quiseram ser identificados e recusaram-se a prestar declarações, criando um ambiente hostil aos jornalistas.

Ao cair da noite chegaram mais peregrinos ao Parque dos Cristonautas, que progressivamente foram enchendo toda a Praça. No largo em frente às Escadinhas da Saúde, as vestes pretas dos manifestantes acentuavam o propósito do que estava para vir. Ao som de música ‘techno’, os jovens acenderam uma pequena lareira ao centro do semicírculo e começaram a queimar uma cruz. O cenário fazia lembrar uma caça às bruxas.

Tanto pela música como pelo aparato em si, os vários jovens das JMJ foram se aproximando, tal como se sucedeu durante o dia. Em curtas abordagens de toca e foge, os manifestantes anti Jornadas receberam algumas provocações. Um rapaz com cerveja na mão e bandeira de Espanha às costas aproximou-se, apontou o dedo num movimento impulsivo e gritou: “hijos de puta”. Os companheiros, prevendo o pior, agarraram no amigo e dirigiram-no ao outro lado da rua.

Quando os ânimos pareciam calmos, um rapaz pertencente à comunidade LGBT, mais afastado da concentração, é, alegadamente, atirado ao chão por um peregrino. Segundo os presentes, o agressor fugiu sem dar hipótese a identificação. Questionados acerca do incidente, nenhum dos lesados quis prestar esclarecimentos. Tanto quanto foi possível apurar, ninguém viu o que se passou senão os próprios.

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