A três dias de fechar definitivamente a loja, Krisna Maugi, de 47 anos, encontra-se em cima de um escadote a esvaziar as prateleiras. Do lado direito já se encontram vazias. No corredor, pelo chão, há caixas de papelão com material pronto a sair, que estreitam ainda mais a passagem onde só cabe, por norma, uma pessoa. A filha mais nova, Nikita, também veio ajudar. Apesar de querer seguir o rumo das ciências, a jovem de 17 anos, que desenrosca os puxadores antigos expostos à entrada, não deixou de aprender a arte do negócio familiar. É ela que, nesta última semana de junho, vai atendendo alguns clientes, enquanto a mãe se despede dos fregueses mais antigos e dos curiosos que tentam perceber o que se está ali a passar.
Há uma década que a moçambicana de origem indiana, consolidou a sua segunda casa na Rua de Campolide, número 54B. Uma casa já com 70 anos, cujo ramo e nome originários foram preservados pelos vários proprietários que a mantiveram. Krisna orgulha-se de ter contribuído para a preservação da história da loja, mantendo a decoração, as madeiras antigas, as prateleiras e alguns materiais. E claro, o espírito bairrista e comunitário do espaço.
Dias antes de fechar o estabelecimento, a proprietária continua a atender os clientes. / MARTA RAÑA
Uma mulher atrás do balcão
O marido detém outra loja de ferragens no Intendente. Foi lá que a última proprietária da Ferragens de Campolide conheceu os vários instrumentos que existem e as suas funções. O negócio em Campolide veio por acréscimo, quando o antigo dono que lhes comprava material, se endividou. “Já tinha uma certa idade e vários problemas de saúde. Nós ficámos com as dívidas do senhor e ele passou-nos a loja, que já estava vazia”, diz Krisna Maugi.
Em Moçambique, a lojista não teve tempo para prosseguir os estudos devido à guerra civil, mas aprendeu vários ofícios. Foi costureira, cameraman e decoradora de palcos. Veio para Portugal há 27 anos, onde casou e constituiu família. Quando adquiriu a loja de ferragens, passou por um duro processo de aceitação. “Havia muita discriminação nos primeiros anos. Uma mulher atrás do balcão… ainda por cima de uma loja de ferragens”, recorda. Os fregueses, sempre habituados a ver homens no atendimento da Ferragens de Campolide, acusavam-na imediatamente de não perceber como funcionava aquele tipo de vendas. “Mas, aos poucos, começaram a respeitar-me, porque viam que eu entendia do assunto”, prossegue.
O freguês António Lapão é uma das presenças habituais na Ferragens de Campolide. / MARTA RAÑA
A sua simpatia foi sendo acolhida pelos restantes comerciantes da Rua de Campolide e pelos moradores. Amizades que Krisna homenageou ao longo dos anos, através de diversas fotografias colocadas na porta da loja, com uma nota a dizer: “As pessoas deste bairro fazem da minha loja um lugar cada vez mais especial”. Foram eles que acompanharam o seu percurso no bairro.
Os mais próximos – idosos vindos de várias partes da freguesia – que todos os dias passavam a tarde com Krisna na loja, assistiram à chegada da primeira carta com o aviso de término do contrato. António Lapão, de 80 anos, é um dos moradores que faz da Ferragens de Campolide um ponto de encontro e convívio. Conhece o espaço há 50 anos e também os antigos donos, que ensinou a conduzir quando trabalhava como instrutor na escola de condução. Atualmente, vê em Krisna uma amiga com quem desabafa e a quem recorre quando precisa de ajuda.
Vários clientes são apanhados desprevenidos ao saber que a loja vai encerrar. / MARTA RAÑA
Sem possibilidade de negociação e contacto direto
Outros clientes pontuais, como é o caso de Isabel Santos, foram apanhados de surpresa. Ao chegar ao balcão da loja, a arquiteta com estúdio em Campolide, pediu a Nikita os materiais que ali costuma comprar para elaborar as maquetes. Ao ser atendida pela filha da proprietária, ver as paredes parcialmente vazias e a agitação geral que se fazia sentir, decidiu perguntar o que se estava a passar. A resposta deixou-a incrédula.
“Pensava que estavam a renovar a loja”, diz à proprietária, que se aproxima, adivinhando uma despedida. “Estou arrepiada”, exclamou, explicando aos presentes: “nesta loja encontro soluções que não existem em mais nenhum lado”. Krisna não hesita em relembrar a relação com Isabel e com outros clientes e o significado que a loja tem para ambos. As lágrimas que Krisna não conseguiu conter e o abraço caloroso da arquiteta, demonstraram que ao longo destes anos, Krisna foi mais do que uma vendedora e Isabel mais do que uma cliente.
Nikita, filha mais nova de Krisna Maugi, retira o material exposto. / MARTA RAÑA
Inevitavelmente, a conversa vai sempre dar a uma reflexão sobre a evolução do bairro de Campolide. “Tínhamos bancos e Multibanco…”, reflete Isabel Santos. “Tenho a sensação de que as coisas estão a evoluir, mas se está a perder o que é essencial”, conclui. O que causa mais perplexidade a todos é o modo como a proprietária foi tratada pelo atual senhorio. Desde início, não houve possibilidade de negociação, nem de contacto direto.
O espaço era alugado e o antigo senhorio vendeu-o. Krisna foi, num primeiro contacto por carta, informada de que o novo senhorio não iria renovar o contrato e foi-lhe dado um prazo para sair. A carta dizia que “tinha outros planos para a loja”. Desde que recebeu o aviso, tem tentado contactar o senhorio para lhe explicar a importância de a manter a funcionar e o que esta significa para o bairro. Mas os seus esforços foram em vão. Recorreu também à sua advogada, que infelizmente disse que não era possível fazer nada para resolver a questão.
Na última semana de funcionamento vários moradores e comerciantes ajudam nas arrumações. / MARTA RAÑA
“Obrigado” a fechar
A tendência para o encerramento de lojas de comércio a retalho na freguesia de Campolide tem vindo a intensificar-se, segundo relatos dos moradores e comerciantes. O último negócio a fechar foi a papelaria pertencente a Mário Prata, de 80 anos, em fevereiro deste ano, como nota a Junta de Freguesia de Campolide, no boletim informativo Notícias de Campolide. A papelaria era já tão conhecida pelos fregueses que já ninguém sabia qual era o seu nome originário. Era somente conhecida como a papelaria do senhor Mário Prata. Esta localizava-se perto da loja Ferragens de Campolide, na Rua General Taborda, perpendicular à Rua de Campolide. Também na condição de inquilino, Mário Prata foi “obrigado” a fechar a loja que mantinha desde 1984. Não teve outra opção. O próprio, que acompanhou a evolução do comércio em Campolide, ressalvou ao Notícias de Campolide que quando o pequeno mercado e a feira de rua deixaram de se realizar “foi a morte de tudo”.
De momento, quando se passa no local onde tinha o seu negócio, vê-se que está fechado para obras com um painel de metal a cobrir a entrada. As remodelações estão integradas no restante edifício destinado à habitação. A Drogaria e Perfumaria Mavi foi outro negócio que encerrou em 2021, embora se desconheça os motivos do fecho. A notícia foi avançada pelo jornal Mensagem de Lisboa. Krisna acredita que o destino do local da loja de ferragens será também para habitação. “Vão renovar e fazer umas obras para depois alugarem para outro fim”, constata.
Edifício onde se localizava a Papelaria de Mário Prata / MARTA RAÑA
Esperanças não faltam
As arrumações continuam na loja de ferragens. À habitual confusão organizada das paredes preenchidas de pequenos e grandes materiais de construção, parafusos, torneiras, utensílios de limpeza, tinta, bengalas ou pregos, junta-se um maior sentimento de tristeza pelos espaços já vazios. Os clientes não param de entrar, pedir ajuda, esclarecer dúvidas. Krisna tenta esvaziar o máximo de material da loja, transportando as caixas de papelão para a carrinha do marido que, por volta das 17h, estacionou à porta. A Nikita juntam-se os comerciantes da frutaria ao lado, que carregam o que podem, enquanto à porta da funerária o dono, também amigo de longa data, observa o que se passa.
Nesse mesmo dia, a família reuniu-se na loja para uma reunião com o representante do senhorio. Ficou combinada somente a entrega da chave da loja, contrariando as últimas esperanças de Krisna Maugi, que pensava ainda ter alguma chance para negociar. “Até ao último momento não vou perder a esperança. Se for preciso volto a pôr as coisas no sítio”, refere. Vários fregueses sensibilizados com o seu caso têm-na ajudado a procurar outro espaço na freguesia. Apesar de o valor das rendas dos locais que encontrou serem incomportáveis, a lojista diz não desistir de um dia poder voltar a reabrir a loja em Campolide.
* À data da redação desta reportagem a loja Ferragens de Campolide, ainda se encontrava em funcionamento.