A inteligência artificial (IA) constitui um dos maiores desafios da ciência e da tecnologia da última década e, dia a dia, vai dando passos de gigante sem que a população em geral se aperceba, principalmente afetando o mundo do trabalho. Recentemente – muito graças a ferramentas como o ‘ChatGPT’, o ‘Google Bard’ ou o ‘Bing Chat’ – descobriu-se a ‘AI’ Generativa (IAG) que, através de múltiplas plataformas, torna já possível a um dispositivo produzir conteúdo novo como músicas, desenhar qualquer coisa por indicação de um ser humano ou produzir textos de forma autónoma. Tudo com recurso a modelos, “matemáticas” muito complexas com base em instruções dadas por pessoas.
É só pedir e ele faz. Faz mesmo. É só testar.
Imagem do Papa Francisco criada através de Inteligência Artificial Generativa, de Pablo Xavier.
Vários especialistas têm garantido que as IA e IAG podem efetivamente vir a auxiliar o mercado de trabalho num futuro próximo. Aliás, de certa forma, já o fazem. E apesar de vir a potenciar capacidades e tarefas, existe o risco de comprometer parâmetros como a autenticidade e a humanidade das coisas. Acredita-se que os efeitos a longo prazo no mercado de trabalho estarão ainda longe de ser conhecidos.
“É cedo para saber ao certo o efeito da inteligência artificial generativa no mercado de trabalho. A tecnologia por trás do ChatGPT não é nova, mas a popularidade do programa está relacionada com o facto de ter surgido gratuitamente e de qualquer pessoa com um dispositivo ligado à internet o poder experimentar”, explica à Tejo Mag, Flávio Nunes, jornalista editor do ECO – Economia Online.
Hoje há exemplos de como a inteligência artificial já substitui a mão humana em várias tarefas. Nos armazéns da Amazon, por exemplo, as funções antes atribuídas a pessoas já estão delegadas a robôs que – previamente programados – processam encomendas. E há outros casos de sucesso no mercado.
“Há muitos anos que o ser humano inventa máquinas para tentar facilitar o seu trabalho e, numa sociedade capitalista, é natural que as empresas procurem adotar algumas destas tecnologias para aumentar a produtividade e reduzir custos, tornando-se mais competitivas”, acrescenta. “Este processo, provavelmente, não acontecerá subitamente e não começou agora. É uma adaptação constante que vai acontecendo.”
E quanto aos postos de trabalho, Flávio Nunes considera improvável “que se torne na origem de uma vaga de despedimentos em massa ou coisa parecida”.
Mas pode efetivamente ser mais vantajoso para uma empresa ter uma máquina que trabalhe 24 horas por dia? Sim, porque não faz pausas para refeições, não precisa de tempo para atividades externas ao trabalho e não exige um aumento salarial porque no fundo, não o recebe. Mas onde fica a humanidade?
Luís Carlos Batista, psicólogo ouvido pela Tejo Mag, acredita que a mediação da tecnologia será fundamental para garantir, em primeiro lugar, a segurança no mercado de trabalho e, a posteriori, que cada pessoa possa assegurar que se sente útil para a sociedade. O aumento das taxas de desemprego será um problema a resolver.
“Em termos civilizacionais, nunca tivemos os números que temos atualmente. Somos já 8 mil milhões de pessoas. Mas continuamos a desenvolver tecnologia para substituir o homem. Isto cria um conflito interno nas pessoas e na sociedade: onde ficam as pessoas? Que trabalho vão desempenhar depois?”
Luís Carlos Batista explica que o ser humano é racional e emocional, sendo sempre preciso um equilíbrio entre os dois conceitos.
“Numa empresa, não haver emoção e haver apenas a racionalização do trabalho é claramente mais vantajoso, porque a emoção influencia sempre o racional. Se a retirarmos, o rendimento é maior. É isto que queremos? Esperamos que haja tarefas que continuem a ser desenvolvidas por pessoas.”
O BOM E O MAU MEDIADOR
Uma das capacidades que a Tejo Mag testou com recurso a Inteligência Artificial foi a construção de escalas de trabalho para uma equipa. Porém, o assunto não é tão linear como parece. Não basta escrever: “Faz uma escala horária com X e Y a desempenhar as tarefas A e B”. É necessário fornecer a informação o mais completa possível ao ‘Bot’ para que possa desempenhar de forma mais eficaz o trabalho para que foi convocado.
Chat GPT 4 – Uma das versões mais recentes da plataforma ‘ChatGPT’, de Inteligência Artificial Generativa.
Com a IA Generativa, o sistema já começa aos poucos a “reconhecer” comandos utilizados para os trabalhos sugeridos e começa a dar respostas mais “humanizadas”. Mas ainda está longe de atingir o nível de raciocínio de um ser humano. Pelo menos por agora.
“Apesar de o ChatGPT, atualmente, precisar sempre de um humano do outro lado do ecrã, estas tecnologias podem ser adaptadas para substituírem os humanos em algumas tarefas. A história leva a crer que, a prazo, algumas tarefas poderão ficar obsoletas e novas funções serão criadas. Por exemplo, há sinais de que vai aumentar bastante a procura por especialistas que conheçam a melhor forma de apresentar um pedido para a máquina entregar os melhores resultados, porque, de certa forma, a qualidade do resultado também depende da qualidade do pedido”, conclui o jornalista Flávio Nunes.
EDUCAÇÃO: ACELERAÇÃO DESMEDIDA?
“O professor não é uma inteligência artificial”, remata Marlène Cavaleira, professora de Português e Francês há quase 30 anos. Foi, no final do milénio, uma das primeiras docentes em Portugal a recorrer a ferramentas digitais para revolucionar a forma de ensino. O objetivo era acrescentar valor à sala de aula. À época era professora numa escola em Sintra. Hoje dirige um centro de estudos em Rio de Mouro.
“Ao nível digital, antes de 2000 não conhecíamos absolutamente nada. Eu sou do tempo em que se faziam testes com corte-costura e fotocópias. Eu e outros professores acabámos por nos interessar pelo digital e tivemos formação em várias plataformas para que pudessemos aprender e ensinar alguma coisa aos alunos. Todos os dias íamos desbravando terreno”.
Fichas de trabalho desenvolvidas por Marlène Cavaleira em 2001
As fichas de trabalho eram construídas com recurso a sites na internet e plataformas de aprendizagem estrangeiras. O conteúdo em português não existia.
“Todos os sites serviam. Entregávamos, por exemplo, uma ficha com o nome de uma série de peças de roupa e os alunos tinham de ir ao site da ‘La Redoute’ para pesquisar e saber a que secção pertenciam. Tudo isto em francês. Claro que o conteúdo não era destinado à educação, mas era uma forma interessante de eles aprenderem.”
Em 2001, Marlène Cavaleira já dava aulas de francês com recurso à internet. 80% da aprendizagem já era feita com recurso a ferramentas digitais.
“Só mais tarde, quando passámos para o caderno eletrónico, com uma turma piloto, tirámos a prova dos nove. Todos os alunos tinham um computador portátil. Ou seja, o caderno diário estava lá. Realizaram depois os exames nacionais de forma tradicional – externos à escola – e destacaram-se”, acrescenta.
Na educação, há questões que têm sido levantadas nos últimos anos, sobretudo desde que a pandemia obrigou as escolas a reformular o conceito de sala de aula. Estamos perante uma desumanização do papel do professor com a inserção das ferramentas digitais? E de que forma pode a aceleração digital prejudicar o desempenho dos alunos?
“É preciso fazer uma reflexão e desmontar tudo.”, conta a professora à TejoMag. “Ver o que foi muito bom e menos bom e colocar numa balança. Do outro lado, temos de colocar o interesse e a interação do aluno. Temos de a equilibrar. Estamos demasiado focados no professor e estamos a esquecer a aprendizagem do aluno.”
Há 15 anos, o ‘Copy Paste’ foi um dos grandes inimigos dos professores. Hoje, a inteligência artificial na internet pode configurar um outro desafio, se não for utilizada da forma mais correta. “É um desafio para a educação e para o mundo do trabalho. Corre-se o risco de diminuir a própria inteligência. A ideia é utilizar o que temos e colocar em prática. É importante a humanização dos textos e dos trabalhos. Há competências que se estão a perder.” acrescenta.
Para Marlène Cavaleira, é importante inspirar os alunos para lhes ser permitido aprender através do erro. Mais que um trabalho, o professor tem uma missão.
Conclui: “Os alunos chegam à escola a cores e saem a preto e branco, embora tenhamos uma panóplia de conteúdos disponíveis como nunca houve. O professor tem de ser humano. Ser humano não se vai buscar ao computador. Temos de ensinar mas passar a mensagem. Tudo é gerido com os laços que se criam com os alunos.”