Em 2017, o Ministro do Ambiente francês preparou um projeto de lei para pôr fim à extração de combustíveis fósseis em todo o território francês, incluindo os territórios ultramarinos, até 2040. A empresa Vermilion e seus advogados ameaçaram processar a França, ao abrigo do Tratado da Carta da Energia (TCE), caso seguisse em frente com a Lei Hulot. O processo não ocorreria num tribunal normal, mas sim num sistema de justiça privado que o TCE possibilita.
Os advogados da Vermilion sabiam que uma ameaça de mil milhões de dólares não podia ser ignorada. E, de facto, o Governo francês parece ter-se vergado perante as exigências das empresas petrolíferas. A versão final da lei permitiu até que, sob certas condições, fossem renovadas licenças de extração depois do prazo de 2040. Deste modo, a nova lei teria agora, de facto, o efeito oposto ao seu propósito inicial. Um ano depois da versão de Setembro de 2017 da sua lei de combustíveis fósseis, o ministro do ambiente demitiu-se. Na entrevista em que comunicou essa decisão, declarou que os lobbies das empresas multinacionais têm demasiada influência na definição de políticas ambientais.
Num episódio relacionado, a empresa sueca Vattenfall iniciou em 2009 um processo contra a Alemanha em relação à construção de uma central a carvão no rio Elba. O governo de Hamburgo aprovou legislação ambiental com o objetivo de proteger a qualidade das águas fluviais, antes de aprovar o contrato final para a construção da central. A Vattenfall alegou que tais exigências tornariam o projeto inviável e que isso resultaria em uma “expropriação indireta”: exigia ser indenizada em 1400 milhões de euros, não pelos danos sofridos, mas por ver frustradas as suas expectativas de lucro. A Vattenfall recorreu a esse sistema de justiça privada, um sistema que arbitra sem ter como referência as leis nacionais, mas sim os acordos de comércio como o TCE, um sistema que não tem qualquer tipo de recurso. Trata-se também de um sistema no qual os árbitros que tomam as decisões beneficiam financeiramente caso as decisões tomadas favoreçam os investidores.
Em 2011, a cidade de Hamburgo concordou em reduzir seus padrões ambientais para evitar os custos da indenização, mostrando a eficácia do mecanismo de intimidação. Muitas vezes este mecanismo tem efeito sem que nenhuma ação seja movida, a mera ameaça é suficiente para intimidar o legislador.
Exemplos como estes são, literalmente, às centenas. O TCE é o tratado que originou mais casos neste tipo de “Tribunais VIP”, onde os interesses das empresas multinacionais são privilegiados face ao interesse público. Com este tratado, não são as empresas que ameaçam o clima quem têm de indemnizar a sociedade pelos graves riscos que nos impõem: ao invés, são elas que exigem indemnizações pagas pelos cidadãos se estes ousam lutar contra as alterações climáticas. Efectivamente, o TCE protege um volume de emissões que é cinco vezes superior ao volume que a UE pode emitir no mesmo período se quiser atingir o alvo de 1,5º estabelecido no Acordo de Paris.
O TCE também ameaça as finanças públicas, a economia e a Democracia. Além de ser um obstáculo à luta contra as alterações climáticas, é também um obstáculo à luta contra a pobreza energética e as rendas excessivas.
Felizmente, os governos da Alemanha, Espanha, Eslovénia, França, Itália, Holanda, Luxemburgo e Polónia já abandonaram ou anunciaram a decisão de abandonar este tratado. Todos juntos correspondem a cerca de três quartos da população e da economia da União Europeia. Apesar da Comissão Europeia ter defendido uma opção diferente, acabou por ceder e vai recomendar o abandono deste tratado.
João Vasco Gama