No ano passado, o PAN propôs um projecto de lei para avaliar o impacto da carga poluente das bacias hidrográficas de Espanha em Portugal. A proposta foi aprovada pela maioria dos partidos, excepto pelo PS, que votou contra, e pelo PCP, que se absteve. O partido pretendia implementar “uma estratégia de despoluição dos rios e demais cursos de água” que “assegure a aplicação de um índice de escassez e existência de rios vivos e caudais ecológicos sustentáveis em toda a sua extensão”. O documento destaca a falta de dados sobre a “degradação do meio hídrico nacional” e a toxicidade do glifosato, “o principal contaminante das águas nos rios Minho, Tejo, Douro e Guadiana”. Durante a discussão na generalidade, a deputada Inês Sousa Real alertou “que o que vem do outro lado da fronteira acaba por ser água sem controlo, contaminada com agro-tóxicos, como o glifosato, que mata peixes às centenas”. “Apesar do quadro preocupante que este relatório nos apresenta e de existirem dados da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) que revelam uma persistente degradação do meio hídrico nacional, a verdade é que não existe uma avaliação do volume e do impacto da carga poluente das bacias hidrográficas de Espanha no território português”, aponta a deputada única do PAN.
Grupos de pressão
De acordo com Alexandra Azevedo, presidente da Quercus, “os interesses para que o glifosato se mantenha no mercado são bastantes e os decisores políticos acabam por procurar subterfúgios para negar essas evidências”. Para Pedro Horta, membro do Grupo de Trabalho de Agricultura Floresta e Biodiversidade da Associação ZERO, “o nível de pressão de alguns lobbies é manifesto no que tem sido a discussão do Regulamento para o Uso Sustentável (SUR) de pesticidas, sobretudo a COPA-COGECA e o grupo de interesse associado aos oligopólios de fabrico de agro químicos, a CropLife”. O especialista em política pública na área de agricultura acrescenta que “a redução da dependência de pesticidas é um custo directo para os produtores destas substâncias e indirecto para os grandes beneficiários do sistema agro-alimentar dominante, pois implica transformações nas grandes unidades de produção, possivelmente dando vantagem a produções em menor escala”. “Uma das estratégias mais utilizadas é fomentar o medo, desta vez associando a guerra na Ucrânia com escassez de alimentos ou aumento do custo para os consumidores. No entanto, não está em causa o abastecimento alimentar na União Europeia, e o aumento do preço dos alimentos tem também uma história por contar em termos de práticas inflacionárias, nomeadamente das multinacionais ligadas à produção de fertilizantes”, esclarece. Segundo Alexandra Azevedo, as opiniões e pareceres contraditórios que foram sendo publicados ao longo dos anos, dão azo a um malabarismo político que visa “caucionar a sua [do glifosato] continua utilização”.
A Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) desvaloriza. De acordo com Luís Mira, secretário-geral da CAP, o glifosato é uma “ferramenta de trabalho essencial para os agricultores” e “deve ser utilizado no respeito integral pelas normas estipuladas para o efeito por parte das empresas e das entidades oficiais, obedecendo a princípios de natureza científica e não a considerações meramente ideológicas”. E frisa: “a utilização de produtos fitofarmacêuticos autorizados obedece a princípios muito precisos e objetivos que, de acordo com as regras em vigor na União Europeia, não oferece risco para os utilizadores, consumidores e meio ambiente. Neste enquadramento, e tendo em conta que a utilização de herbicidas é necessária para que os agricultores possam produzir alimentos em quantidade e a preços acessíveis, torna-se essencial evitar fundamentalismos ideológicos que coloquem em causa a produção agrícola e que releguem a ciência para segundo plano, face a motivos de agenda política e ideológica”. À TejoMag, Luís Mira diz que “a proibição de substâncias activas que se tem verificado nos últimos anos no espaço comunitário, acaba por criar uma situação de concorrência desleal entre operadores a nível mundial, com clara desvantagem para os produtores europeus”. “A questão não será o uso ou não do glifosato e a sua eventual substituição, mas sim podermos continuar a produzir alimentos em qualidade, quantidade e acessíveis ao consumidor europeu”, sublinha.
Esta posição vai de encontro à descrita pela Quercus, que aponta o dedo aos agricultores com uma mentalidade mais conservadora. Em declarações à TejoMag, a presidente da Quercus explica que “a resistência têm muito haver, desde logo, com os próprios agricultores que se sentem reféns deste modelo que os empurra”. “Em tudo na vida, é importante termos a coragem de sair da roda que nos mantém num determinado estilo de vida. Isto aplica-se a praticamente tudo”, indica. A Plataforma Transgénicos Fora vai mais longe, afirmando que “a industrialização da agricultura está a criar mais problemas do que soluções”. “Em vez de adoptar o modo de produção biológica, como a Comissão Europeia (CE) propõe na estratégia «Do Prado ao Prato», a agro-indústria prefere apostar na biotecnologia, criando organismos sintéticos desenhados para serem imunes aos pesticidas”, alerta. No documentário “Demain”, publicado em 2015, Olivier De Schutter, Relator Especial da ONU sobre pobreza extrema e direitos humanos, reiterou que se continua a “apoiar os agricultores mais competitivos que praticam uma agricultura nociva, mas que satisfazem as expectativas a curto prazo dos políticos e das pessoas”. A TejoMag contactou as organizações COPA-COGECA e Crop-Life, bem como o Ministério do Ambiente e o Ministério da Agricultura, mas até à hora do fecho desta edição, não obteve resposta.
RAFAEL BAPTISTA
Prenda envenenada
O documento enviado à Assembleia da República pela deputada Inês Sousa Real baseou-se num relatório publicado pelo grupo Ecologistas en Acción, uma confederação de mais de 300 grupos ambientalistas sediada em Espanha. O relatório destaca que “as análises de contaminantes químicos realizadas por órgãos oficiais em 2019 mostram que todas as bacias hidrográficas apresentam contaminação com substâncias tóxicas em águas superficiais (rios reservatórios e lagos) e subterrâneas”, onde se inclui o glifosato.
Tanto em Espanha como em Portugal, a falta de avaliação governamental do volume e impacto da carga poluente é preocupante. O relatório supramencionado reforça que o glifosato foi o pesticida detectado com mais frequência no rio Tejo, presente em 277 das 391 amostras analisadas. Em Portugal, o seu uso é generalizado na agricultura e também nos serviços de autarquias. Embora seja proibido o uso de herbicidas e pesticidas em espaço público, a revista Science of the Total Environment revelou que Portugal apresentou os níveis mais elevados de glifosato entre os países europeus. Esse produto foi detectado em 53% dos solos analisados, 46 vezes mais do que na Polónia (7%). De acordo com a Quercus, até ao final de 2022, 72 autarquias assinaram o Manifesto “Autarquias sem Glifosato/Herbicidas”, uma campanha que visa abandonar o uso dessas substâncias e sensibilizar as autarquias e a população em geral para os impactos dos herbicidas e possíveis alternativas, através de encontros e debates públicos. Contudo, no ano passado, a Direcção Nacional da Quercus retirou do mapa, com base numa denúncia, a Câmara Municipal de Mafra e a Junta de Freguesia de Ferrel, concelho de Peniche.
“Provavelmente carcinogénico”
Já se escreveu muito sobre os riscos do glifosato, descrito pela Organização das Nações Unidas como “provavelmente carcinogénico”. De acordo com Pedro Horta, “caso as intenções do Governo Português se mantiverem, acrescem os planos de incremento do regadio ao longo da bacia do Tejo, em mais de uma centena de milhar de hectares, para o novo programa de regadios, com uma intensificação nos cursos de água”. “Na maioria das formulações, os pesticidas à base de glifosato são bastante tóxicos para os organismos aquáticos. Caso se venha a provar inequívoca a relação entre esta substância activa e danos para a saúde humana em baixas concentrações, estamos aqui perante uma situação muito grave”, alerta. Segundo este representante da ZERO, “os instrumentos de gestão territorial que abrangem o rio Tejo e os seus afluentes devem ser devidamente monitorizados, garantindo o seu cumprimento, principalmente no que diz respeito ao uso e ocupação dos solos e actividades / acções condicionadas”. “A aplicação da Directiva Quadro de Água também deve ser prioritária, garantindo que não existem massas de água com estado inferior a bom, algo que abrange o país vizinho”, explica.
Aliás, em 2015, a Agência Internacional para a Investigação sobre o Cancro da Organização Mundial de Saúde (IARC-OMS) afirmou que “os dados de todos os estudos combinados mostram uma relação significativa entre o linfoma não Hodgkin e a exposição ao glifosato”. Coincidentemente, a Liga Portuguesa Contra o Cancro dá conta que “em Portugal, todos os anos, cerca de 1700 pessoas são informadas que têm linfoma não Hodgkin (LNH)”. Segundo Alexandra Azevedo, a evidência científica aponta para o “aumento da intolerância ao glúten, do autismo, do Alzheimer e das doenças do foro degenerativo e reprodutivo, como o aborto e a infertilidade”. E a nível nacional? “Não há muitos estudos. O que acontece é que quando estas substâncias são autorizadas, os estudos são feitos pelas empresas e não são escrutinados publicamente”. Isto para dizer que em termos de ciência, há ocultação de resultados”, sublinha.
RAFAEL BAPTISTA
Alternativas sustentáveis
Mas também existem aqueles que optam por práticas agro-ecológicas como a comunidade na Herdade do Freixo do Meio, que adoptou a agricultura sintrópica, um sistema baseado na diversidade de espécies vegetais, no aproveitamento do espaço em altura, na continuação das espécies de forma temporal e espacial e no enriquecimento do solo pela introdução de resíduos vegetais. Quando questionado sobre as medidas necessárias para reduzir a exposição e os impactos do glifosato no meio ambiente e na saúde humana em Portugal, Pedro Horta enfatiza “que é necessário implementar o que vem definido na Directiva Uso Sustentável (SUD) de pesticidas, já presente na Lei nacional, ou seja, condições para a adopção efectiva dos princípios da Protecção Integrada, deixando de haver uma aplicação sistemática de pesticidas, relegando a luta química para o seu lugar devido: apenas em último recurso – algo que é reconhecido pela avaliação do primeiro Plano de Acção Nacional para o Uso Sustentável de Produtos Fitofarmacêuticos (PANUSPF)”. Em termos gerais, “a ZERO considera que o uso de quaisquer pesticidas, independentemente da substância activa que contêm, deve ser regrado”. “Isto significa que a luta química deve apenas ser utilizada em último recurso, esgotadas as restantes alternativas, mediante uma ponderação dos danos e incorporação de medidas correctivas. No entanto, na prática, continuamos a observar um uso sistemático de pesticidas, resultado de sistemas agrícolas muito baseados em monoculturas e com escassas estruturas ecológicas”, constata. Para Alexandra Azevedo, a solução passa pela “comunicação e sensibilização da população”, promovendo “uma concepção mais natural dos espaços verdes”.
A Liga para a Protecção da Natureza (Lpn) tem uma visão menos optimista. De acordo com Rita Martins, bióloga sénior desta organização, “não há ainda boas alternativas à utilização deste pesticida para certos usos, incluindo o controlo de algumas espécies invasoras (acções muitas vezes integradas em projectos de conservação da natureza). Embora defendam a “eliminação progressiva da utilização dos pesticidas sintéticos”, a Lpn diz que “precisamos de ser realistas e aceitar que é necessário algum tempo para dominar as soluções técnicas que permitam um nível de produção em linha com as exigências globais”. Mas salienta: “não defendemos a interdição do seu uso a curto prazo, desde que cumpridas as normas legais e de segurança, considerando importante investir no desenvolvimento de alternativas”. No que se refere à redução do uso de pesticidas e à promoção de práticas agrícolas mais sustentáveis, Rita Martins dá conta da participação da Lpn no projecto “Boas práticas agrícolas para a biodiversidade no contexto das alterações climáticas”, uma iniciativa que tem como objetivo “promover a adopção de boas práticas agrícolas que incrementam a biodiversidade nas explorações agrícolas adaptadas às diferentes realidades agrícolas nacionais, como sendo um contributo importante para a adaptação e mitigação aos efeitos das alterações climáticas”.
Regulação do uso de glifosato em Portugal
Na mais recente lista de pesticidas a pesquisar em água de consumo humano, a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) afirma que “embora o herbicida glifosato não preencha a totalidade de critérios estabelecidos para a selecção de pesticidas a pesquisar em águas destinadas a consumo humano, nomeadamente no que diz respeito ao seu destino e comportamento no solo e ao seu potencial de mobilidade, recomenda-se a sua pesquisa, incluindo, também a pesquisa do seu metabolito AMPA, pelo menos uma vez por ano, em águas destinadas a consumo humano, com colheitas na água bruta provenientes de captações de água superficial, efectuadas no âmbito da monitorização operacional da entidade gestora”. O documento publicado em 2021 esclarece que “a este pesticida em particular não é aplicável a isenção de pesquisa face à sua utilização generalizada em áreas agrícolas, zonas urbanas, zonas de lazer e vias de comunicação”.
A Comissão Europeia sobre Plantas, Animais, Alimentos para Consumo Humano e Animal (SCOPAFF) aprovou o uso desta substância até 15 de Dezembro de 2023, embora a sua renovação esteja em processo de avaliação científica pela Agência Europeia de Segurança Alimentar (EFSA) e pela Agência Europeia dos Produtos Químicos (ECHA). Resta esperar.
NOTA – Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.