Durante as décadas de 60 e 70, persistiu nos órgãos de comunicação social uma propensão quase neurótica com tudo o que dizia respeito à principal agência de informações americana, a Central Intelligence Agency, mais conhecida como CIA. Baptizado pelo New York Times como o “Síndrome de James Bond”, este fascínio era caracterizado pela vontade de revelar ao público informações confidenciais que estavam reservadas a um punhado de indivíduos. Num artigo publicado nesse jornal em 1966, um oficial de informações referiu que a reputação do seu trabalho e a dos seus colegas dependia da mentira. Foi com base nessa premissa que as acções da CIA ficaram para a história, não tanto pelo secretismo, mas pela falta de honestidade e transparência com que foram levadas a cabo.
Uma agulha no palheiro
Em 1949, o Congresso norte-americano aprovou uma lei que autorizava a CIA a contornar todos os procedimentos legais a que estava anteriormente sujeita. A agência de espionagem ganhou uma liberdade sem precedentes, tornando-se praticamente ingovernável. Um Estado dentro de um Estado. Entre os anos de 1962 e 1971, a secreta esteve presente em pelo menos 16 países, entre os quais, Portugal. “Em 1965, vários aviões foram transportados dos Estados Unidos para Portugal para serem utilizados contra os movimentos de libertação negra em Angola e Moçambique”, lê-se num artigo publicado pela revista Earth em 1972. Este empreendimento constituiu uma clara transgressão dos Actos de Neutralidade, uma série de leis destinadas a evitar o envolvimento da maior economia mundial em conflitos estrangeiros.
Fonte: Getty Images
No ano seguinte, a comunidade internacional ficou a saber que John Richard Hawke, um antigo piloto da RAF com apenas 28 anos, tinha pilotado sete bombardeiros B-26 para Portugal. O caso foi julgado no Tribunal Federal de Buffalo, tendo passado relativamente despercebido. Juntamente com Hawke, a bancada dos réus era composta por Henri Marin Montmarin, um conde francês ligado à resistência durante a Segunda Guerra Mundial, e outros três, que conseguiram escapar à justiça. Entre eles estava Gregory Board, o alegado cabecilha, encarregado de obter as licenças de exportação. Este último nunca compareceu em tribunal, tendo, alegadamente, fugido para a Jamaica. Todos os arguidos eram pilotos.
Numa altura em que a política oficial americana apoiava a igualdade entre os pares e a autodeterminação dos povos indígenas, o escândalo expôs uma ferida difícil de sanar. Solução? Mentir. Essa mentira espalhou-se como uma infecção. Questionado pelos delegados soviético e húngaro acerca da venda dos B-26 para Portugal, os representantes norte-americanos para as Nações Unidas, Arthur Goldberg e Eugenie M. Anderson alegaram que a venda tinha sido feita por privados, sem o conhecimento do seu governo. No entanto, consoante os documentos apresentados ao juiz John O. Henderson pelo à data advogado da CIA, Lawrence R. Houston, a venda das aeronaves era do conhecimento prévio dessa entidade, do Departamento de Estado e de outras 10 agências federais. Os relatórios datavam de 25 de Maio de 1965, quatro dias antes do primeiro voo rumo ao Aeródromo Militar de Tancos.
Martin Caidin, uma das testemunhas-chave no processo, afirmou em tribunal que a CIA estava envolvida. Conforme o antigo piloto, escritor e conselheiro de Estado, essa informação foi confirmada por Board, seu conhecido, e por outros dois coronéis da Força Aérea americana. “Com base na minha experiência como piloto, uma pessoa não pode pilotar aviões militares para fora dos EUA sem a cooperação de várias agências governamentais”, sublinhou.
Bode expiatório
Segundo o artigo cientifico Política Americana na África do Sul: Os desafios e a orientação, após 1962, os EUA “recusaram-se consistentemente a apoiar qualquer resolução que fosse além da linguagem declarativa e da tentativa de acção para alcançar a autodeterminação para o povo de Moçambique ou de outras colónias portuguesas”. Embora tenha financiado grupos como a FNLA de Roberto Holden, Washington tornou-se cada vez mais relutante em apoiar as resoluções da ONU que criticavam Portugal. Segundo o mesmo estudo, essa indefinição “permitiu a alguns afirmar que, na pior das hipóteses, os Estados Unidos apoiavam ambos os lados”. No fim, prevaleceu o apoio a Portugal e ao império.
Legenda: Holden Roberto, líder histórico da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) entre 1962 e 2007, data da sua morte. Fonte: Blogue Livros Ultramar- Guerra Colonial
Durante três semanas e meia, a defesa encabeçada por Edwin Marger e Edward Brodsky alegou que Hawke e Montmarin eram meros bodes expiatórios, abandonados à sua sorte por uma organização com medo de desencadear outra polémica de proporções internacionais. Antes de os advogados darem o caso por encerrado, Marger referiu-se ao julgamento como “os 10 pequenos índios e o padrinho”. Os índios, disse, eram todas as pessoas envolvidas na operação, incluindo os arguidos, Board e os vários contabilistas e empresários. O padrinho representava o Governo, descrito por Marger como um “homenzinho que não era visto e que dava sempre um toque de sorte ao Sr. Hawke”. Essa sorte, que o acompanhou em todas as viagens, permitiu-lhe, bem como aos outros intervenientes, transportar sete bombardeiros B-26 para Portugal sem licença legal ou qualquer restrição.
Segundo o New York Times, a polícia secreta portuguesa que o recebeu em Tancos deu à operação o nome de código “Sparrow” (Papagaio), uma espécie de salvo-conduto caso fosse questionado. Uma transcrição da CIA de um artigo publicado no jornal comunista, Pravda, colocava a questão nos seguintes termos:
“Numa manhã ensolarada, um avião C-46 estava prestes a descolar no aeroporto de Rochester, Nova Iorque. O seu piloto, John Hawke, já tinha aquecido os motores quando, de repente, um jeep Willys do serviço aduaneiro aproximou-se da aeronave. Ao abrir o porão, o inspector ficou surpreso, pois não esperava um carregamento tão valioso. O avião estava repleto de espingardas, metralhadoras e outros equipamentos militares. John Hawke e os seus companheiros não ficaram constrangidos por serem apanhados em flagrante. Hawke proferiu apenas duas palavras: “Sparrow” e “Monarch”, palavras que o inspector reconheceu de imediato. Pouco depois, o C-45 deslocou-se até à pista de descolagem. Contudo, em Miami, onde Hawke aterrou em segurança após algumas horas, apercebeu-se que estava sob vigilância. Como explicou mais tarde, não deu muita importância a isso, considerando que as autoridades aduaneiras locais e os agentes do FBI estavam a “exagerar”. Afinal, o que é que um agente ao serviço da CIA teria a temer?”
Fonte: “Operação Sparrow”, um artigo publicado no dia 15 de Maio de 1966 no jornal Pravda.
Em Maio de 1965, Hawke e Board deslocaram-se até Tucson, Arizona, onde se situavam as sedes de duas empresas envolvidas no comércio internacional de aeronaves: a Aero Associates, ligada a Board, e a Hamilton Aircraft, propriedade de Gordon B. Hamilton. Ao que a TejoMag apurou, a Aero Associates concordou em efectuar um pagamento de 450 mil dólares à Hamilton Aircraft, mediante uma carta de crédito no valor de 694 mil dólares, proveniente do banco United Overseas. Este montante dizia respeito à venda e manutenção de 20 B-26 para Portugal. Como já aqui foi referido, apenas sete desses aviões chegaram ao seu destino.
Esta operação estava longe de ser secreta. Hamilton chegou inclusive a receber várias visitas de agentes do FBI e representantes da Agência Federal de Aviação. Contudo, nenhuma destas organizações impediu Hawke de sair do país. Pouco antes da detenção dos dois arguidos, Hamilton questionou o adido aéreo português em Washington, se Portugal estava interessado em adquirir os restantes 13 aviões. A proposta partia do pressuposto que a “utilização das aeronaves seria limitada ao território português”. Portugal não aceitou.
Piloto sofre desastre
No dia 14 de Outubro de 1966, o júri do Tribunal Distrital Federal, composto por dez homens e duas mulheres, absolveu Hawke e Montmarin de todas as acusações. Segundo o presidente deste órgão, os arguidos foram “apenas um instrumento de Board”. O Departamento de Estado americano ficou desapontado com esta decisão. Ao jornal Times Herald, o antigo porta-voz Robert J. Mccloskey explicou que encontrou consolo no facto de o júri ter rejeitado “a alegação da defesa de que o governo dos Estados Unidos estava, de alguma forma, envolvido na transacção”.
Fonte: Notícia sobre a morte de Hawke. Fonte: Il Piccolo (30/12/1991)
Nos anos 90, Hawke foi encontrado morto na sequência de um desastre de avião ao largo do Porto Levante, no Golfo de Veneza, em Itália. Segundo o relatório do incidente, “o piloto foi identificado com base na documentação recolhida e as autoridades italianas deram início a um inquérito”. “A investigação italiana concluiu que o acidente foi causado por uma combinação de factores, nomeadamente a não retracção do trem de aterragem principal direito, as condições meteorológicas e a escuridão. As possibilidades de colisão ou explosão foram categoricamente excluídas. No entanto, não se pode excluir a possibilidade de alguma forma de incapacidade do piloto”, lê-se no relatório. Essas hipóteses não foram bem recebidas pelo público e pela imprensa, que sempre suspeitaram de jogo sujo. Afinal, Hawke enfrentou o Estado e ganhou…
NOTA – Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.