É seguramente indispensável que a educação contemporânea e os professores se inscrevam no espírito e no desenvolvimento do nosso tempo. Não podemos imaginar o futuro de forma útil sem combinar o nosso conhecimento do passado e a percepção das grandes mudanças em curso. Contudo, admitir essa inscrição não significa que ela deixe de ser contrabalançada pelo acesso a uma cultura multimilenar que passa pelas humanidades, pela literatura, pela história e por um tema que parece indispensável — o conhecimento e a compreensão dos outros.
Por isso, numa abordagem de educação integral a opção entre um saber humanista e um saber-fazer utilitarista não faz sentido. Saber conciliar um e outro em todos os níveis de escolaridade é simultaneamente uma questão essencial e um desafio indeclinável, que implica que a escola se adapte não só às necessidades profissionais ou técnicas, mas também às necessidades de uma sociedade e da sua cultura.
Perante a natureza e a relevância destas mudanças alguns investigadores, designadamente Gerhard de Haan(1) sustentam que uma concepção de educação está a chegar ao fim da sua história. Porém, o problema não reside em reconhecer esta realidade ou até mesmo as exigências do novo conhecimento. A dificuldade está em conciliar a pluralidade de visões do mundo numa abordagem humanista das políticas e práticas educacionais e em definir os meios e os métodos próprios para facilitar as aprendizagens (pedagogia) e lhes conferir um sentido, num contexto mutante e inovador.
No plano pedagógico, a transição da sociedade tradicional para a sociedade de conhecimento traduziu-se na ordem escolar pela adopção de um modelo centrado no acto de aprender em substituição do anterior que era dirigido pelo imperativo de transmitir.
Até ao início deste século, o debate situava-se ainda em torno de dois modelos de ensino: a autoridade do professor, a disciplina e o mérito versus o aluno no centro, a sua inteligência, a sua curiosidade natural, o seu desenvolvimento. Mas, bastou uma década para que a centralidade destas questões diminuísse. A comunidade política internacional passou a interessar-se pela eficácia das políticas educativas e pela importância de métricas comuns, centradas na avaliação das competências dos alunos e no controlo dos resultados escolares. O conhecido programa PISA (Program for International Student Assessment) ocupou o centro do debate e das preocupações dos governos e a atenção dos meios académicos, lembrando nas sucessivas edições a quase todos e aos governos em especial, que é possível atingir melhores resultados na educação(2) .
Não obstante os resultados obtidos, o facto é que este espaço simbólico de pressão sobre os sistemas de ensino induziu um sentido de competição contraproducente nas aprendizagens, sem deixar de se considerar ipso facto um desafio. O último desafio resultou da pandemia SARS-COVID 19 e da inopinada ruptura produzida nos percursos escolares. As escolas viram-se subitamente esvaziadas e projectadas para o ensino à distância, sem qualquer preparação prévia. De um dia para o outro, professores, alunos e pais foram confrontados com a perplexidade de uma situação dramática e com a necessidade de adoptar de forma continuada práticas de educação remota. Instalou-se a ideia de que as escolas e os professores poderiam ser substituídos por tecnologias destinadas a transferir conteúdos. E, se por um lado, a tecnologia faz parte do nosso tempo, por outro, a ideia de que tudo vai passar para o digital e de que a inteligência artificial vai mudar as aprendizagens esvazia a relação educativa da sua dimensão humana. Não é possível separar o ser, o sentir e o saber (Damásio, 2020)(3),razão pela qual o digital exige que se cultive a relação humana. Ou seja, o digital não pode substituir os professores.
Em suma, a resposta aos desafios pré e pós-pandemia não se compagina com um regresso ao passado. Historicamente, as pandemias forçaram os humanos a romper com ele e a imaginar um mundo novo. Esta não é diferente. É uma porta de entrada entre um mundo e outro. Perante esta oportunidade a alternativa está em continuar a manter e arrastar as velhas visões e práticas, ou em entrar no caminho aberto, prontos para imaginar outro mundo e conceber outras práticas. De forma necessariamente simplificada, este dilema corresponde à opção entre duas tendências: a, que valoriza as dimensões individuais, quer através do ensino doméstico, quer pela utilização dos dispositivos digitais, quer ainda no modo como os estudos das neurociências procuram personalizar as aprendizagens. A outra que valoriza a escola como espaço público, de encontro e cooperação, de trabalho colaborativo, defendendo a criação de novos ambientes educativos. Sobre esta a UNESCO (4) propõe um novo contrato social para fazer da educação um projecto público e um bem comum, no quadro de um espaço público, aberto, plural e participado.
No fundo, trata-se de transformar a educação numa viagem em demanda de portos inexistentes para corresponder ao cumprimento de um rito que a sociedade reconhece e para o qual oferece as condições necessárias. Mas, se as opções de sociedade implicam opções de educação e pontos de partida, a sociedade deverá evitar impor o lugar de chegada, mesmo que no nosso tempo os mecanismos de mercado tentem oferecer competitivamente esse lugar. E mais, terá de reconhecer a relevância e a autonomia profissional dos professores ao leme da ”viagem” e dos processos de mudança, porque estes são insubstituíveis e fazem toda a diferença na relação pedagógica de uma educação integral e humanista.
(1)“Vivemos o fim da educação da jovem geração pela geração precedente, que existia desde a origem Gerhard de Haan, Die Zeit in der Pädagogik. Vermittlungen zwischen der Füller der Welt und der Kürze des Lebens, Weinheim, Beltz, 1996, p.121.
(2) A avaliação deste programa incide sobre os alunos que em 2000 tinham a idade de 15 anos que corresponde à idade de conclusão do ensino obrigatório em grande número dos países europeus.
(3) António Damásio, Sentir & Saber: A caminho da consciência, Lisboa, Temas e Debates,2020.
(4) Reimagining our futures together: a new social contract for education. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000379707.