Começou por ser um espaço de resposta alimentar como tantos outros, mas ser apenas isso não foi o “quanto basta” para Maria João Sousa que, a trabalhar na luta contra a fome há 10 anos, coordena hoje uma equipa com mais de 400 voluntários ucranianos, incluindo na mercearia digital que promoveu.
“Cada um soma a sua parte a um todo”, conta à TejoMag. Não fosse este um dos lemas da SOUMA – ‘Associação Amigos da Estrela’ que em três anos já apoiou mais de 600 agregados em carência alimentar na grande Lisboa.
“Para ser uma resposta verdadeiramente transformadora na vida das pessoas era importante que fosse o mais digna possível, indo ao encontro das suas verdadeiras necessidades”.
Mas a ideia de criar uma mercearia social – para acrescentar valor às restantes áreas de intervenção da associação – já tirava o sono a alguns elementos. Nesse sentido, faltava a chave para a concretizar.
Pandemia: o ponto de partida da mercearia
Há três anos, a Organização Mundial da Saúde declarou a Covid-19 uma pandemia e, em consequência disso, Portugal “ficou em casa”, como tantas vezes se repetiu na Comunicação Social.
“Iniciámos efetivamente o projeto alimentar com a pandemia. O facto de outras organizações que davam resposta semelhante terem reduzido ou fechado portas fez-nos avançar. Por isso, convidámos a comunidade que estava fechada em casa para cozinhar e ajudar a comunidade que estava igualmente fechada em casa mas a precisar de alimentos”, acrescenta.
Pouco depois, a ideia pegou e, em menos de 3 meses, a SOUMA já chegava a mais de 400 pessoas de vários pontos da região. Assim, as famílias que pediam ajuda dirigiam-se às instalações da associação em Campolide e recolhiam um cabaz de alimentos e outros bens essenciais.
“Mas para as pessoas não virem até nós e continuarmos a chegar até elas, a única forma de implementar o projeto social de uma mercearia seria a resposta online” Era urgente para os voluntários ter forma de dar resposta aos inúmeros pedidos que chegavam todos os dias.
Já em 2023 nasceu a ‘Mercearia da Ana Rita’, inspirada numa das mentoras da equipa, que teve uma quota parte significativa de responsabilidade em transmitir a todos a vontade de ajudar o próximo. Primeiro com papel e caneta e mais tarde com recurso ao digital.
Uma soma de valências
“É bonito quando temos um sonho e alguém nos ouve sonhar e diz: “Nós conseguimos fazer”. Isto realmente não é um sonho que vai ficar numa ‘cloud’ e tenho à minha frente alguém que quer executar isto. E assim nasce uma relação difícil de adjetivar.”
A LHV2, uma empresa da área informática, foi a chave que faltava. Caminharam juntos durante quase dois anos com ideias, sugestões, muitos avanços e recuos. O objetivo seria perceber de que forma podia uma plataforma online servir a população e, mais importante: como seria a comunidade capaz de a utilizar sem restrições.
“Não imagino o custo que isto poderia ter se tivéssemos de pagar”, diz Maria João Sousa. “Esta parceria ‘pro bono’ com a LHV2 trouxe uma resposta incrível às pessoas e ao projeto”
Na plataforma, cada agregado tem um nome de utilizador e uma palavra-passe. É criada uma conta com toda a informação essencial e é gerado automaticamente um perfil. Até hoje são quase 200. São de imediato atribuídos os “Soumapontos” – uma espécie de plafond – conforme o número de pessoas do agregado.
“Tentámos criar uma plataforma que não fosse facilmente rejeitada por quem a utiliza. Funciona tal como outras plataformas de supermercados, organizadas por categorias. Os utilizadores selecionam os produtos que querem adquirir consoante as suas necessidades e o número de pontos vai diminuindo”, esclarece Leonardo Simôa, da LHV2.
Há dias próprios para as encomendas, que podem ser semanais ou quinzenais. Os pedidos são submetidos e consultados depois pelos voluntários da SOUMA. Processam-nos através da mercearia física já existente. As doações dos parceiros facilitam a gestão de ‘stock’ da associação.
Maria João Sousa esclarece: “As famílias são responsabilizadas pelas suas escolhas. Têm de gerar competências para gerir o orçamento. A resposta é muito mais digna e vamos tendo algumas surpresas”.
Acolhimento em Portugal
A guerra na Ucrânia gerou uma crise social sem precedentes no século XVI. Em poucas semanas foi necessário adaptar as rotinas das várias associações de apoio portuguesas para dar resposta à urgência de acolher e dar o suporte necessário às famílias que chegavam ao país. A SOUMA garante hoje alimento a 187 refugiados ucranianos.
Iryna Rosokhata está ainda a aprender português. É natural de Kharkiv e chegou a Portugal com a filha em julho de 2022. O marido ficou, mas conseguiu partir para Lisboa no final de fevereiro deste ano.
“Fugi da minha cidade e do meu país. Era maravilhoso e agora está destruído. Não tive opção e tive de sair. Tomei a decisão em dois dias e cheguei a um lugar que não conhecia”.
Sem qualquer ligação a Portugal, o principal obstáculo foi a língua. Iryna foi, inicialmente, apoiada pela Cruz Vermelha e em poucas semanas encaminhada para a SOUMA. Foi apresentada à equipa de voluntários e recebeu alojamento provisório e apoio psicológico. Posteriormente, tornou-se beneficiária da mercearia social.
“Recebemos apoio, carinho e comida. É por isso que digo que esta é a minha família em Portugal. A ajuda deles foi essencial neste processo. As pessoas aqui são maravilhosas”.
De ajudada a ajudante
Beneficiária mas também voluntária, tal como outros sete refugiados ucranianos que se juntaram à mercearia. Em poucos meses, Iryna percebeu que poderia tornar-se mais útil. Está inserida num dos turnos que diariamente processam os pedidos. Confessa que vive um dia de cada vez porque, no horizonte, ainda só existe nevoeiro. Não sabe quando vai voltar – e em que circunstância – mas, por agora, está feliz em Lisboa.
“Participar numa forma de ajuda era uma coisa que já queria fazer. É uma forma de dar de volta o apoio, a comida e todo o carinho que me deram nos últimos meses”.
Um mês e meio de surpresas
Um mês e meio após o lançamento da mercearia social em formato digital, a SOUMA faz um balanço positivo.
“A adesão é enorme”, diz Maria João Sousa. “Muitas pessoas que começaram com alguma reticência – apoiadas na altura por alguns voluntários dedicados especificamente a isso – já são autónomas e fazem as suas encomendas sozinhas”.
Por isso, no que diz respeito ao trabalho informático, a entrada de várias famílias ucranianas no leque de beneficiários foi um desafio para os técnicos envolvidos na gestão da plataforma. Mas a barreira linguística não chegou a ser um tema em cima da mesa. As famílias aderiram rapidamente ao sistema de encomendas.
Assim, foi dado o primeiro grande salto.