Saída em liberdade: “o importante é a sociedade não nos virar as costas”

Um tema tabu?

A prisão continua a ser um assunto tabu. A falta de interesse por parte do público geral acaba por exigir menos informação, sendo que “há muita coisa que não está a ser medida e muita coisa que não está a ser comunicada” diz-nos Inês Tavares, coordenadora do projeto Reshape Ceramics.

Em 2015 nasceu a Associação Reshape com o objetivo de tornar os Estabelecimentos Prisionais (EP) em Casas de Detenção focadas na reintegração dos reclusos. Inês Tavares acrescenta que estes estabelecimentos alternativos procuram ser “de pequena escala, de tratamento diferenciado e junto da comunidade”. A coordenadora do projeto de reintegração de reclusos avança que umas das propostas legislativas apresentadas pela Reshape é, precisamente, “permitir que casas de detenção existam para pessoas que estejam a cumprir o final da pena”.

Saída em liberdade

Por norma, em Portugal, os condenados não cumprem a pena completa, saindo, no caso de bom comportamento, aos dois terços. No entanto, são muitas as coisas que têm de reaprender a fazer, como por exemplo todas as obrigações burocráticas “que estiveram em pausa durante aquele tempo”. Por outro lado, é provável que “a situação familiar e de amigos” tenha mudado, o que implica uma adaptação à nova realidade, afirma Inês Tavares no atelier da Reshape Ceramics em Lisboa.

Na Casa de Saída, a educadora social da associação Confiar, Cátia Correia, aponta para uma falha na gestão dos documentos de identificação: “têm de sair de forma legal, e saem com uma ilegalidade cometida por eles, que é o cartão de cidadão fora de validade. Não é que eles sejam ilegais, porque eles têm o documento, mas está fora de validade, não serve para nada.” Alberto Borges, monitor voluntário também na Associação Confiar, acrescenta outros casos concretos como “o  IRS por fazer durante anos (…), multas acumuladas no site das finanças, não fecham atividade” conclui que existe um “abandono total daquilo que é a realidade.” Por outro lado, para preparar a saída, seria importante ajudar o recluso a “inscrever-se no centro de emprego, se não arranjar emprego no início, pelo menos ir para uma formação profissional.”

Atelier da Reshape Ceramics em Arroios onde se produzem peças de cerâmica únicas.

O primeiro trabalho

São várias as dificuldades em conseguir o primeiro emprego, como diz Inês Tavares, trata-se de um público que “em geral vem de uma classe social mais baixa, que não tiveram as mesmas oportunidades, que saíram da escola muito cedo, que o tempo de reclusão também as afetou a nível psicológico e físico”, mais ainda, “muitos deles nunca sequer tiveram trabalhos formais antes de entrar numa prisão, nunca foram a uma entrevista de trabalho ou nunca fizeram um CV.” Para além disso, o vazio que fica num curriculum vitae é difícil de explicar numa entrevista de emprego, “mentir não funciona” e, por isso, incentivam sempre a que cada um conte “a sua história” e aquilo que de facto estiveram a fazer, sendo que muitos “aproveitam o tempo que estão lá dentro para terminar o 9º ou o 12º ano”. Por outro lado,“há empresas que percebem que para terem pessoas a trabalhar têm de ignorar este fator que não tem nada a ver com a capacidade das pessoas de trabalhar.”

Com o lema “um trabalho, um trabalho melhor, uma carreira”, a Reshape Ceramics localiza esforços na formação e no emprego de todos aqueles que procuram ajuda adaptando, à priori, as expectativas. O primeiro trabalho não tem de ser para sempre, mas será essencial para uma progressão na carreira.

Com vista a prestar apoio na reinserção efetiva dos reclusos, a Reshape Ceramics foi criada pela associação, em novembro de 2020.  Tirou partido de um atelier de cerâmica inteiramente montado no Estabelecimento Prisional de Caxias para dar formação e criar postos de trabalho. Mais tarde, abriu o atelier em Arroios onde contrata ex-reclusos. Ali encontramos o Jaime, de 44 anos, que aprendeu a arte da cerâmica no EP de Caxias, em 2019. Quando saiu em liberdade condicional, foi convidado para trabalhar no atelier de Lisboa onde está desde setembro de 2022. Neste momento mora com o pai o que lhe permite ir juntando o dinheiro que ganha. Confessa-nos que a Reshape “tem dado imenso apoio psicológico e financeiro.” O Jaime é o terceiro colaborador remunerado do projeto.

Francisco, um dos utentes da associação Confiar, no seu quarto na Casa de Saída.

A Casa de Saída

Em 2018 é criada a Casa de Saída da associação Confiar com o objetivo, não só, de alojar ex-reclusos, mas principalmente, de garantir “um acompanhamento de proximidade dos utentes no processo de transição para a liberdade”, conforme nos conta Carolina Viana, presidente da associação. Acrescenta ainda que a ideia da Casa é que este público consiga “ integrar o mercado de trabalho e poupar algum dinheiro com vista à sua autonomização” uma vez que não têm qualquer despesa com renda, água, luz, comunicações e alimentação. Os 3 quartos da casa são destinados a pessoas “em cumprimento de pena em liberdade ou que já cumpriram a pena em reclusão e se encontram em situação de maior vulnerabilidade e exclusão social. Têm de estar aptos a ingressar no mercado de trabalho, não podem ter consumos ativos nem sofrer de nenhuma patologia psiquiátrica grave.” Até ao momento, não existe nenhum utente que tenha passado pela Casa que tenha reincidido.

Localizada no bairro de Alcoitão, Cascais, a Casa acolhe neste momento quatro inquilinos que procuram recomeçar as suas vidas. De forma a preservar a identidade de cada um, serão utilizados nomes fictícios – o Raúl, o Mário, o José, e o Francisco.

A Casa de Saída é partilhada por quatro ex-reclusos.

O Raúl preparou a sua saída com a Confiar. Dentro da Casa vai-se adaptando às novas rotinas, como ir à Reefod buscar comida, as visita regulares de um cozinheiro que lhes ensina a gerir os alimentos e a cozinhar e, durante o fim de semana, limpar a casa. Depois de um ano e seis meses em prisão preventiva quer “arranjar um trabalho e voltar para Mem Martins”.

O Mário esteve preso duas vezes, aproveitou o tempo para tirar o 6º ano e um curso de jardinagem. A pouco tempo de sair, a sua técnica de reinserção falou-lhe da Confiar e foi assim que conseguiu um quarto na Casa de Saída. Agora quando pensa no futuro confidencia-nos que quer “arranjar um trabalho.”

O José é jardineiro na Câmara Municipal de Cascais, é aqui que está a tentar que o Raúl e o Mário comecem também a trabalhar. O espírito de entreajuda impera na casa, conhecem bem as dificuldades de recomeçar do zero.

O Francisco é o membro que está na Casa há mais tempo, fez em dezembro um ano. É açoreano. Passou grande parte da sua vida emigrado nos Estados Unidos. De regresso à ilha, é condenado e enviado para Pinheiro da Cruz. Quando a sua pena estava a chegar ao fim, conta-nos, “não sabia o que fazer (…) não sabia com quem podia falar” até que a Confiar o contactou. Com este apoio conseguiu solicitar o Rendimento Social de Inserção e, mais importante, uma casa onde ficar.

O Mário procura conforto no livro da Bíblia.

Carlos Barbosa, um caso de sucesso

Carlos Barbosa, tem 45 anos e é natural da Reboleira. Esteve preso duas vezes, a primeira, quando tinha apenas 19 anos. Ao todo foram dezoito anos em privação de liberdade. Atualmente vive com a sua companheira e tem dois filhos, o Lucas, do primeiro casamento, e o Santiago.

Em conversa com a TejoMag, lembra-se do momento em que decidiu que aquele não seria mais o seu caminho: “perdi a minha mãe em 2005, e não me deixaram ir ao velório. Foi um momento difícil (…) mas aí bateu o clic, decidi mudar, ser uma pessoa melhor.” A partir de então Carlos Barbosa agarrou as rédeas da sua vida e, tal como tinha aprendido numa aula de ética ministrada pelo Professor Luís Graça, anterior presidente da associação Confiar, começou a “alimentar o cão bom” que havia dentro dele, depois de ter alimentado “o mau durante muitos anos.”

Carlos Barbosa à porta da sede da associação Confiar no Linhó.

Aproveitou o tempo no EP para fazer um programa de desintoxicação cujo sucesso se deveu ao apoio das psicólogas. “Não parar” foi fundamental para cumprir os 12 anos de reclusão da segunda condena – “estar sempre a trabalhar, sempre a querer aprender coisas novas, era pedreiro, era faxina, depois fui para barbeiro, depois para ajudante de cozinheiro, nunca parei”.

A Confiar estendeu-lhe a mão neste processo e, quando saiu em liberdade, foi convidado para ser o responsável da Casa de Saída, no bairro de Alcoitão: “Estive lá quatro anos, correu bem, gostei da experiência, mas tive de seguir com a minha vida”. Hoje tem outros objetivos e, após ter aproveitado as oportunidades que lhe deram, conseguindo concluir o 9º ano e o curso de cabeleireiro profissional oferecido pela Escola de Alcabideche, está a iniciar novo projeto: a Barbearia do Bairro.

Carlos Barbosa vai remodelar o interior de uma carrinha e transformá-la numa barbearia ambulante com vista a oferecer este serviço nos bairros mais desfavorecidos: “Vou cortar o cabelo, vou andar de bairro em bairro (…) onde as pessoas não têm condições para cortar cabelo.” A grande recompensa diz ser a gratidão que lhe dá ajudar os outros: “Ajudaram-me bastante porque é que eu não hei-de ajudar as outras pessoas que precisam de mim?”

Carlos Barbosa vai adaptar a carrinha para colocar em marcha o seu novo projeto, a Barbearia do Bairro. Ao fundo, o Estabelecimento Prisional do Linhó.

Carlos contou sempre com o apoio da família – das quatro irmãs e dos pais – mas a Confiar foi “um porto seguro”. Da sua experiência conta-nos que no momento de saída em liberdade o “importante é a sociedade não nos virar as costas, não nos fechar as portas.”

A história de Carlos Barbosa é um caso de sucesso que pode contribuir para alargar os horizontes dos jovens mais vulneráveis, tal como fez Johnson Semedo, uma referência para Carlos: “ele tirou várias crianças do mundo do crime e eu também gostava de fazer isso, com a minha história de vida  tentar mostrar que aquele não é o caminho certo, o caminho certo é estudar trabalhar, focar nas coisas boas que eles querem, não essa vida de criminalidade, vender droga, roubar. Esse caminho só nos leva ali [aponta para a prisão do Linhó]. Ou ali, ou ao cemitério.

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