Segundo o relatório das Nações Unidas sobre a situação da população mundial na saúde e direitos sexuais e reprodutivos, divulgado a 17 de abril deste ano no Instituto Camões em Lisboa, nas últimas duas décadas assistiu-se a uma diminuição global da mortalidade materna (número de mortes relacionadas com a gravidez e o parto por 100 mil recém-nascidos) de 34%.
Apesar de “o rácio de mortalidade materna ser universalmente considerado como um indicador importante da qualidade dos cuidados de saúde obstétricos”, este número mascara uma realidade bipolar, em que ao mesmo tempo que nos países em desenvolvimento se procura, ainda, “trazer cuidados seguros e acessíveis a todas as mulheres”, nos países desenvolvidos está a haver uma “rápida expansão de práticas criadas para começar, aumentar, acelerar, regular ou monitorizar o processo fisiológico do parto”.
“O objectivo destes últimos é o de melhorar os resultados para as mães e os seus bebés”, mas, tendo-se generalizado, “têm sido levantadas cada vez mais questões no que toca ao valor de níveis tão altos de intervenção”, dado que esta medicalização, “tendencialmente mina a própria capacidade da mulher de dar à luz e impacta negativamente a sua experiência de parto”.
O que diz a OMS
De facto, segundo a Organização Mundial de Saúde, “muitos dos que tentam melhorar os serviços de maternidade correm o risco” de porem em prática “intervenções que “não ajudam, não são apropriadas e/ou mesmo não necessárias”. Segundo a mesma organização, isto acontece porque, “em muitos países, os obstetras concluem que os cuidados durante um parto normal devem ser similares aos cuidados durante um parto com complicações”.
Embora “não exista um conceito standart ou universal de “normalidade” no parto”, crê-se que “a maioria dos nascimentos, globalmente, ocorrem entre mulheres sem fatores de risco para elas próprias e para os seus bebés, quer no início, como durante o trabalho de parto”.
“Não obstante, a altura do nascimento é crítica para a sobrevivência das mulheres e dos bebés”. Por esse motivo, têm sido “encorajadas a dar à luz em estabelecimentos de saúde. Isto permite assegurar o seu acesso a profissionais treinados e a intervenção atempada no caso de ocorrerem complicações” dado que “a morbilidade e a mortalidade podem crescer consideravelmente se estas surgirem”.
Grávidas saudáveis recebem intervenções clínicas
“No entanto, estas condições não garantem cuidados de boa qualidade. De facto, globalmente e principalmente junto de populações menos privilegiadas, os cuidados maternos indignos prevalecem, o que constitui uma violação dos direitos humanos.”
“O modelo de cuidados durante o parto em muitas partes do mundo permite que seja o profissional de saúde a controlar o processo, o que pode expor uma grávida aparentemente saudável a intervenções médicas desnecessárias que interferem com o processo fisiológico natural do nascimento.”
Os “estudos mostram que uma percentagem substancial de grávidas saudáveis é sujeita a, pelo menos, uma intervenção clínica durante o parto, tal como indução do mesmo, aumento da oxitocina ou cesariana, bem como intervenções de rotina ineficazes e potencialmente prejudiciais, tais como enemas, fluidos intravenosos ou administração de antibióticos.”
O que é a violência obstétrica?
Esta “abordagem intervencionista não é adequadamente sensível às necessidades pessoais da mulher e da sua família, e pode enfraquecer as suas capacidades durante o parto e ter um impacto negativo na sua experiência de dar à luz.”
E quando “a integridade e autonomia da pessoa em processo de conceção, gestante, parturiente ou puérpera, é violada, na forma de interações humilhantes ou não dignificantes, que são experienciadas enquanto tal ou que têm intenção de o ser, estamos perante violência obstétrica”.
“A violência obstétrica é reconhecida como uma forma de violência baseada no género com prevalência global”. E, embora estudos recentes “registem uma normalização de múltiplas formas de maus-tratos no contexto dos serviços de assistência obstétrica em Portugal”, mostrando que “o nosso país não é excepção relativamente a esta problemática”, o Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos relembra que estamos “seguramente entre os países do mundo onde se regista um menor número de maus-tratos durante a gravidez”.
A posição da Ordem dos Médicos
A mesma organização, que a 26 de julho de 2021 foi solicitada a pronunciar-se sobre este assunto, defende também que “embora haja certamente aspetos a melhorar, não devemos deixar que nos confundam e que se crie um ambiente de crispação entre as grávidas, as suas famílias e os profissionais de saúde”, pois, apesar de à Ordem dos Médicos chegarem, esporadicamente, queixas de experiências negativas, quase sempre se constata “que foram cumpridas as boas práticas e que ‘mau trato’ teria sido não se terem providenciado as intervenções que se realizaram”.
Na mesma emissão informativa, o Colégio esclarece que “o sistema público tem de assegurar cuidados equitativos a todas as grávidas, com urgências abertas 24 horas por dia e, tendo as equipas de assistir, ao mesmo tempo, a todo o serviço com que se depararam, isto ocorre umas vezes, de forma tranquila, outras vezes em situações de rutura com casos de vida ou morte pela frente. Esta organização é universal, equitativa, muito eficaz e segura, mas é potencialmente geradora de tensões e conflitos, nomeadamente num momento tão especial e emocional como o parto”
Como solução para esta questão, sugere-se “um esforço contínuo de bom acolhimento e comunicação com as grávidas e as suas famílias”, mas também o “combate de protagonismos e populismos, alimentados por pessoas sem a devida preparação obstétrica, que confundem e minam a relação fundamental de confiança que deve existir entre os profissionais de saúde, as grávidas e as suas famílias.”
Na conclusão da sua comunicação, a Ordem dos Médicos incentiva as grávidas e as famílias a “informar-se junto de fontes credíveis, sem dar ouvidos a fontes manipuladoras, confiar nos profissionais de saúde e colocar-lhes as suas dúvidas e expectativas, sendo que reclamações devidamente fundamentadas são bem-vindas, ao contrário de reclamações sem fundamento que envolvem custos consideráveis e que ocupam muitas horas os serviços e os profissionais, subtraindo-lhes tempo para a resolução de problemas prioritários”.
A legislação portuguesa
Em Portugal, existe desde 2014 legislação que “estabelece os princípios, direitos e deveres aplicáveis em matéria de proteção na preconcepção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério”, tanto relativamente à mãe como relativamente “ao pai, a outra mãe, ou a pessoa de referência, e a todas as pessoas que se encontrem na qualidade de acompanhante.”
Esta legislação foi alterada pela segunda vez em 2019, pela Lei n.º 110/2019 de 9 de setembro, revestindo-se esta de especial importância por reconhecer os direitos referidos (que incluem, entre outros, o direito ao consentimento informado, à confidencialidade e privacidade, à dignidade e respeito) seguindo as orientações da Organização Mundial de Saúde e também por decretar que “para efeitos de avaliação e monitorização da satisfação da mulher grávida relativamente aos cuidados de saúde durante a assistência na gravidez e no parto, a Direção-Geral da Saúde (DGS) deve disponibilizar um questionário de satisfação, a preencher por via electrónica, e proceder à divulgação anual dos seus resultados acompanhados de recomendações.”.
Implementação da legislação
Relativamente a este questionário, e embora a lei referida tenha entrado em vigor em setembro de 2019, a recomendação de divulgação anual dos resultados, à excepção de um “Relatório Questionário de Satisfação do Utente – Internamento de Ginecologia – Serviço de Ginecologia e Obstetrícia” publicado a 12 de fevereiro deste ano pela Unidade Local de Saúde de Lisboa Ocidental, parece não ter sido implementada ou pelo menos não de uma forma óbvia, sendo que uma pesquisa online apenas resulta em dois documentos com orientações da DGS, mas que não referem qualquer questionário aos utentes.
Neste documento, divulga-se os resultados de uma avaliação do serviço feita por 16% da população alvo (os doentes do internamento do Serviço de Ginecologia) em que, relativamente ao atendimento em geral, à garantia de confidencialidade e ao atendimento em particular (que aborda ao todo 9 valores, desde a “Amabilidade dos Assistentes Técnicos” até à “Acessibilidade Física”), foi solicitado que avaliassem o atendimento numa escala de cinco valores, desde “Muito insatisfeito” até “Muito satisfeito”.
No entanto, para além da divulgação dos resultados em si e de um espaço destinado à partilha de “Elogios” e “Sugestões de Melhoria”, não existe neste relatório qualquer recomendação da DGS.
Testemunhos de um novo movimento
Para além das recomendações legais e institucionais, que já começam a alertar e a propor solução para a problemática, tem crescido em Portugal um movimento em que mulheres têm dado o seu testemunho publicamente, denunciando situações de violência obstétrica.
Exemplo disso é o testemunho de Patrícia Vinagre, que à TVI conta que a um dia de completar as 40 semanas da gravidez da sua segunda filha é internada por deteção de pré-eclampsia. Informada de que tinha de ser internada e que lhe iria ser induzido o parto, refere que “tentaram-me fazer, e fizeram-me, várias vezes o toque, o qual me magoava muito, não me pediam autorização para o fazer, simplesmente faziam (…) Chorei bastante, desesperada, a pedir que parassem de o fazer”. Patrícia refere que decidiu falar num programa de televisão, porque queria alertar outras mulheres e incentivar a que “não se calassem”
Também Laura Ramos, no site da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto conta que, “apesar de toda a informação que já tinha, não consegui evitar mais uma péssima experiência de parto num hospital de Lisboa”. E, “por isso ingressei na APDMGP e decidi tornar-me ativista pelos direitos das mulheres na gravidez e no parto”.
“Nascer com Direitos”
Mia Negrão é outra ativista proeminente pelos direitos na gravidez e no parto, tendo já publicado sobre o tema o livro “O Meu Parto, as Minhas Regras” (publicado pela editora Arena) e fundou também o projeto “Nascer com Direitos”.
No site “Plano de Parto” refere que a violência obstétrica pode traduzir-se em “agressões verbais, proibições e restrições de gritar, de movimentar, de ter acompanhante(s), humilhações, ameaças e coacção” e até mesmo “ofensas à integridade física, nomeadamente empurrões, amarrar a parturiente à cama, fazer pressão e bater na barriga, entre outros”. No entanto, acrescenta que, no fundo, trata-se de “ignorar o carácter natural e fisiológico do parto, que é tomado como patologia em relação à qual existe necessidade de intervenção.”
Para além das denúncias, os/as ativistas avançam com uma solução, exigindo às equipas médicas “uma forma de conduta segura e respeitosa (…) baseada em evidências científicas actuais e guiada por orientações da Organização Mundial de Saúde – OMS”. É aqui que entra o conceito de “Parto Humanizado”.
O que é o parto humanizado?
No site “Meu Parto” esclarece-se que “o parto humanizado não é um tipo de parto” pois, de facto, “dar à luz com uma assistência humanizada significa ter à disposição o melhor amparo médico e tecnológico para garantir a segurança da mãe e do bebé, e só receber intervenções quando for realmente necessário”. Sendo que num “parto humanizado, quem decide os métodos para alívio da dor é a mulher. Nele, não existe um roteiro, todos os recursos são escolhidos por ela e intervenções médicas só são realizadas em caso de necessidade”.
A mesma fonte adianta que “como o corpo feminino é naturalmente preparado para a gravidez e para o nascimento, a equipa de atendimento humanizado respeita a autonomia da mulher. (…) Por isso, o curso natural do trabalho de parto é respeitado e a equipe só interfere se houver necessidade e com o consentimento da mulher.”.
O outro lado do parto humanizado
No entanto, é importante fazer também notar que o parto humanizado não é uma solução simples. De facto, outras fontes alertam para a possibilidade de “a demora em interromper um parto normal com problemas, por exemplo, (…) trazer graves complicações” e que o parto humanizado não será recomendado em situações de “gravidez de risco, gestação tardia ou na adolescência, gravidez de gémeos e em casos em que o bebé está numa posição desfavorável” .
O testemunho de Cristina Cardigo, no seu website, descreve “um parto muito intervencionado que me deixou um amargo na boca”. Tendo escolhido o hospital onde queria que o seu filho nascesse, salienta também que desejava um parto natural. Esse desejo levou a que pedisse, por duas vezes, o adiamento da indução do parto, mesmo informada pela equipa médica de que “aumentava substancialmente o risco de infecção”.
A epidural foi outra intervenção médica que Cristina só autorizou (depois de uma recusa inicial) “quando não aguentava com tantas dores, e sabia que só estava a adiar porque queria sentir-me forte e fazer o processo natural”.
Cristina descreve os momentos imediatamente anteriores ao parto, em que “tinha (…) uma enfermeira em cima da minha barriga a empurrar o bebé por fora. Até que chamou a médica. Iriam usar os fórceps, porque eu não estava a ser capaz.”. Mais tarde, foi informada de que o seu bebé “tinha o cordão enrolado em duas zonas do corpo o que levou a uma dificuldade maior em sair”.
Uma solução complexa
Verifica-se aqui que, tal de como referido acima, a questão do parto humanizado é mais complexa do que à primeira vista se pode notar: ao mesmo tempo que temos a vontade da mãe e da sua família, temos também decisões médicas que podem ter de ser tomadas com conhecimento clínico.