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A banalização da literatura

Enquanto alguns entendem isto como mais uma maneira de proporcionar maior acessibilidade à leitura – afinal, um número crescente de pessoas está a desenvolver hábitos da leitura, em parte, graças aos influenciadores digitais –, por outro lado, poderá parecer que o ato de ler, em específico, e a literatura, no seu todo, estão a sofrer uma certa banalização.

O primeiro ponto de vista apresentado acima defende que as obras cuja prosa (ou verso) são de mais fácil compreensão e abordam temas interessantes a um grande número de pessoas, ganharão uma vasta quantidade de leitores. Quem trabalha oito horas por dia e chega a casa para limpar fraldas, tirar blocos de lego da boca das crianças e fazer-lhes o jantar, não terá tempo, paciência e, sobretudo, interesse, em ler uma obra densa, que exija do leitor a maior atenção aos detalhes.

Na verdade, qualquer pessoa que procure apenas uma forma de evasão da realidade e escolheu a literatura como meio para alcançar esse objetivo, há-de optar, com frequência, por uma história que o cative desde a primeira página e descreva clara e distintamente – isto é, sem palavras difíceis – ódios tamanhos que se tornam em amores ainda maiores – expresso por frases como “Diz-me agora quem te fez isso”, bem como detalhadas cenas de sexo – feiticeiros e fadas no campo de batalha, intrigas políticas que colocam o destino dos adorados protagonistas em jogo, revoluções, jogos de vida ou morte, etc. Contudo, quem diz isto pode tanto estar a falar de Hunger Games (Suzanne Collins) como de After (Anna Todd). 

O Smut

No que concerne, em específico, à emergência do smut (livros que apresentam cenas de sexo explícitas), surgem outras questões, tais como: será que estes livros podem ser considerados “verdadeira” literatura ou serão mera pornografia? O que, por sua vez, implica a questão: livros pornográficos ou eróticos fazem parte daquilo a que chamamos “literatura”? Quem coloca questões dessas não deve ter lido ou estudado os grandes clássicos: o Decamerão, por exemplo, é um grande livro constituído por inúmeras histórias de caráter erótico, uma das quais tem lugar num convento e um dos nossos grandes poetas, Bocage, é famoso pela sua poesia erótica.

Todavia, existe distinção entre erotismo e pornografia — em linhas gerais, pode dizer-se que a diferença central se encontra no intento do autor, isto é, se o objetivo principal de uma dada obra é proporcinar prazer de índole sexual. O consenso geral é que o erótico tem lugar na literatura, mas o pornográfico não (do mesmo modo que ninguém afirma que os filmes do PornHub são obras cinemáticas).

A verdade é que um número impressionante de pessoas que nunca se interessaram por leitura durante toda a sua vida, de repente criam nos seus quartos bibliotecas quase exclusivamente constituídas por smut, começam a passar noites inteiras com livros nas mãos, compram Kindles, apaixonam-se por fanarts de personagens, etc.

De acordo com as respostas de duas leitoras ávidas deste género literário, as cenas mais quentes constituem uma mistura entre o pornográfico e o erótico. Segundo uma das leitoras, “dá para perceber melhor o plot e as personagens; por exemplo, no livro que estou a ler agora a protagonista está com gajo que não tem nada a ver com ela. Também torna a história mais interessante”.

Mas… então ser-se um leitor é banal? Ler é só mais uma atividade como qualquer outra? Talvez seja possível afirmar que ser “leitor”, no sentido geral, está agora pouco ou nada relacionado a uma vida refletida, a cultura ou mesmo a capacidade de concentração por extensos períodos de tempo, pois estes livros seriam quase que uma espécie de fast-food literário – é popular, acessível, de rápida ingestão e o único sabor vem do molho.

Alguns chegam a declarar que a literatura está, de certo modo, a ser diminuída a uma mera forma de entretenimento comparável a telenovelas, sem qualquer necessidade de reflexão ou profundidade, cujo artifício é irrelevante e o enredo será esquecido no preciso momento em que os ventos que governam o booktok (TikTok sobre livros) mudarem de direção. Contudo, tanto os leitores de Dostoievski como os de S.J Maas concordam que o ato de ler exige mais concentração do que o de ver um filme ou uma série e, no caso dos fãs de ACOTAR com quem tive contacto, apenas o empreendem por não existir uma alternativa audiovisual (embora alguns destaquem a imersão na história que consideram única à leitura).

Tanto os “romances cor-de-rosa” como os que simplesmente tiveram a sorte – e o azar –  de se terem tornado estrondosamente populares desde sempre foram fortemente criticados. Durante os séculos XVIII e XIX, obras hoje consideradas parte do cânone da literatura mundial foram relegadas ao título de “romances de mulheres/meninas”, isto é, não constituíam a literatura “séria” (na qual se incluíam autores obscuros, livros científicos, filosóficos ou de ficção, mas que pertencessem ao cânone literário da época) estudada, é claro, única e exclusivamente por membros do sexo masculino, de inerente superior inteligência ao feminino, segundo os preceitos destes séculos. 

Dickens e Machado, pela sua popularidade, eram vistos como pouco mais que autores de revista (isto porque, há uns dois séculos, era usual escrever obras capítulo a capítulo e publicá-las em jornais ou revistas), indignos da “alta literatura”. O Amante de Lady Chatterley (D. H. Lawrence), foi censurado em múltiplos países pelo seu – escasso – conteúdo sexual. Lolitta (Vladimir Nabokov) foi banido por apresentar cenas de pedofilia e sexualizar uma menor. Gustave Flaubert foi levado a tribunal, porque a sua Madame Bovary ia contra os preceitos morais judaico-cristãos (spoiler alert: a protagonista que dá nome ao livro cultiva casos extra-conjugais). A lista continua. 

O que se quer dizer com tudo isto é que a literatura, popular ou obscura, reflete a vida, mesmo sob os olhos de dragões. Sexo faz parte da vida; naturalmente, será utilizado por artistas dos mais variados meios para demonstrar e descrever tópicos que vão desde o amadurecimento das personagens e o desenvolvimento dos seus sentimentos, até a adentrar na mente de um predador, pelo que o smut não é novidade nenhuma.