Manifesto pelo Dia da Nação sem autoritarismos

A palavra “nação” tem hoje uma conotação negativa e uma carga que nos remete para visões isolacionistas, militarizadas e pouco ou nada tolerantes para com os outros, ou para com o diferente.

Portugal tem vários dias do calendário para celebrar a sua existência e as suas características culturais. O mais reputado e conhecido é o 10 de junho. Uma data celebrativa que se estabeleceu no final do século XIX (só se tornando feriado mais tarde, em 1919), associado à suposta data do falecimento do maior poeta e escritor português de sempre (para muitos), Luís de Camões. O mesmo Luís de Camões sobre o qual passam (alegadamente) 500 anos sobre o seu nascimento. Depois de algumas denominações oficiais e oficiosas, passados 140 anos, o 10 de junho tem uma tripla celebração: Dia de Portugal, Dia de Luís de Camões e Dia das Comunidades Portuguesas.

Porém, muitos anos antes do falecimento (ou nascimento) de Luís de Camões já existia Portugal. Um território e um povo surgido ainda na Alta Idade Média, no século XII. Convenciona-se entre os historiadores e demais cientistas sociais que Portugal terá surgido, enquanto território independente a 5 de outubro de 1143, aquando do Tratado de Zamora (também podemos usar o topónimo Samora no português atual), em que Afonso VII de Leão e Castela reconheceu a Portugal o direito de independência. Hoje, esta data é de certo modo ofuscada por outra data histórica: o 5 de outubro de 1910, alusivo à Implantação da República.

Alguns, mais eruditos, e talvez mais religiosos, recordam o 23 de maio de 1179 e a Bula Manifestis Probatum, em que o Papa Alexandre III reconhece o estatuto de independência a Portugal. Esta data é hoje utilizada para fazer um paralelo (com os respetivos anacronismos) com o reconhecimento internacional da independência.

Não obstante a importância de todas estas datas e efemérides, existe uma que marca o início de Portugal: trata-se de 24 de junho de 1128. A data que assinala a Batalha de São Mamede. Foi com a Batalha de São Mamede, travada perto de Guimarães, que D. Afonso Henriques se fixou como o derradeiro líder do território até então chamado de Condado Portucalense e afirmou a existência de um território e de um povo deliberadamente diferentes dos demais.

Não pretendo aqui questionar a historiografia e os cânones atuais da academia portuguesa. Teríamos de entrar por questões como o Tratado de Tui em 1137, pelo primeiro documento em que D. Afonso Henriques assina como rei em 1140, ou ainda pelo conceito de príncipe na Alta Idade Média, pois foi como príncipe que D. Afonso Henriques se autodenominou entre 1128 e 1139 (o ano da Batalha de Ourique).

O território de Portugal era também muito mais exíguo quando comparado com o atual, só atingindo a dimensão atual de Portugal continental em 1249 e só viu as suas fronteiras fixadas em 1297, aquando do Tratado de Alcanizes (ainda que amiudamente ameaçadas em episódios esporádicos até ao século XIX). Durante estes 896 anos, Portugal manteve o seu território uno e independente, com exceção dos 60 anos do período filipino que, muito teriam para contar e precisar em pormenores jurídicos associados ao conceito de independência.

Mas mais do que um território, ou do que uma pátria, o que se devia celebrar a 24 de junho era uma nação. A palavra e o conceito de nação estão atualmente conotados com ideais isolacionistas e discriminatórios. No entanto, se pensarmos na etimologia, o conceito remete-nos para a cultura.

Ao contrário de muitos pensamentos nacionalistas e ultranacionalistas atuais, a nação portuguesa nada tem a ver com cores, raças, opções sexuais ou géneros. Eu arrisco (até enquanto católico) a escrever que a nação portuguesa não tem necessariamente a ver com a religião. É óbvio que quando Portugal surgiu, a predominância dos portugueses era branca ou caucasiana, e essa situação não desapareceu. Não obstante, com a Expansão Marítima Portuguesa, essa situação esbateu-se e hoje existem portugueses de várias cores e várias raças. Assim, não faz qualquer sentido estas visões racistas que ainda existem e que vão surgindo ou ressurgindo na sociedade portuguesa.

Ao romper da aurora portuguesa, na Alta Idade Média, a sociedade da Europa ocidental organizava-se por três classes: a nobreza ou Bellatores, responsáveis pelo poder da guerra, o povo, os laboratores, encarregues do trabalho e da produção de bens, e o clero, os oratores, os senhores da palavra e, portanto, do conhecimento e da escrita. O território era dominado religiosamente pela Igreja Católica e pelo Cristianismo. Tornou-se natural os monarcas e casas reais apoiarem-se no clero para construir a estrutura social e até, por vezes, administrativa, dando origem séculos mais tarde ao conceito de Estado como hoje o concebemos. No entanto, os monarcas portugueses, apesar dos constantes confrontos bélicos e políticos com as elites de outras religiões como a muçulmana, aceitaram muitas vezes a população que professava as outras religiões. Não esqueçamos até a amizade de D. Afonso Henriques com Ibn Qasi ou o ministro do tesouro do nosso primeiro monarca, o judeu Yahia Ben Yahia. A segregação urbana existiu, é certo, mas o ódio ocorreu muito mais tarde, já nos séculos XV e XVI, com a expulsão dos Judeus e a Inquisição, situações que se prolongaram até ao início do século XIX.

Mas a nação portuguesa evoluiu. A Revolução Liberal de 1820 instituiu a liberdade religiosa e hoje, o Estado é laico e a sociedade muito mais instruída. A confissão religiosa pode indicar os princípios educacionais da maioria das famílias portuguesas, mas não caracteriza a identidade nacional dos portugueses.

Nas últimas décadas, os níveis de escolaridade básica (impostos pelo Estado) e de escolaridade média têm subido quase exponencialmente. Uma sociedade mais instruída é uma sociedade mais aberta, logo mais desperta para as realidades íntimas e sexuais. O sexo já não é um tabu. A paixão e o amor também não. Por isso, hoje entendem-se melhor as minorias sexuais ou, melhor, a comunidade LGBTQIA+.

Hoje percebemos que a igualdade de género e a equidade geracional são cada vez mais necessárias.

Mas perante tanta liberdade, tanta igualdade, tanta liberalização de usos e costumes, ainda há espaço para falar na nação portuguesa?

Claro que há. Portugal não é só um território e um Estado independente, é também uma cultura própria. Temos um idioma, ameaçado por constantes estrangeirismos desde o século XVIII e descurado da sua influência no mundo por fantasmas colonialistas, decolonialistas e pós-colonialistas. Criámos estilos artísticos, arquitetónicos e estéticos próprios como o Manuelino. Temos uma gastronomia e todo o património imaterial a esta associado, temos correntes musicais e estéticas de canto próprias. Mas a nação não está fechada no seu processo criativo. A nação constrói-se todos os dias e continua a necessitar de se construir. Se o idioma português só surgiu autonomamente no século XIII e precisou de chegar ao século XVI para ter gramática e dicionário próprios, existem elementos como o vestuário ou indumentária que precisam de criar uma imagem cultural portuguesa própria. Essas identidades existem em Portugal, no âmbito regional ou regionalista, mas, não no âmbito nacional.

Portugal é um país que não se pode fechar em si, nem nos seus fantasmas, e tem de saber respeitar e acolher os cidadãos de outras nacionalidades que escolhem Portugal e a economia portuguesa para viver e trabalhar. Mas não pode ter vergonha de celebrar a sua cultura, nem muito menos tentar adaptá-la a processos de ocidentalização e europeização cultural. Podemos e devemos conviver com todos, respeitando-nos nas nossas diferenças.

Não é tempo de nacionalismos ditatoriais, nem de tendências “wokistas”. Não é tempo de guerras culturais e sociais. É tempo, (como sempre foi) de celebrar Portugal.

Frederico Gaspar

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