Na agricultura regenerativa, “muda-se a forma como se produzem os alimentos”

No contexto atual, em que se enfrentam desafios ambientais e alimentares, a  agricultura regenerativa surge como um sistema inovador para fazer face a estas questões. Num momento em que as preocupações com as alterações climáticas se intensificam, esta pode ser uma solução promissora, que oferece uma alternativa sustentável e resiliente. 

A TejoMag esteve à conversa com três responsáveis por diferentes quintas,  que defenderam a importância e as vantagens deste método de cultivo.

 

Quinta do Pisão 

“Tem tudo a ver com a fertilidade do solo e com uma abordagem diferente”. 

A horta da Quinta do Pisão é um local “onde as pessoas podem colher diretamente  os seus legumes”. Quem o explica é André Miguel, chefe de divisão do Terras de Cascais,  um programa que promove a agricultura urbana biológica e que é responsável por esta  horta de um hectare e meio. O espaço baseia-se, essencialmente, em três técnicas que são  consideradas fundamentais para a agricultura regenerativa: a proteção da terra, a  introdução dos animais e a garantia da fertilidade do solo. 

Estes três fatores traduzem-se numa menor necessidade de tratamentos e controlo de  pragas, já que as plantas apresentam capacidade para se protegerem delas e das doenças.  Isto não acontece no sistema agrícola convencional, porque, para além de as plantas não  estarem no ecossistema certo, não têm o solo verdadeiramente fértil e também não têm acesso a todos os nutrientes de que precisam. “Precisam também de fatores de crescimento, aminoácidos, vitaminas e isto só é conseguido com a microbiologia, que, se funcionar bem, consegue disponibilizar todos estes nutrientes”, realça André.

“Há uma diferença grande entre um solo fértil e nutrição de plantas. Eu consigo  nutrir plantas não tendo um solo fértil. No entanto, não vou conseguir com isso  plantas nutricionalmente densas”. 

André destaca a importância da introdução dos animais nesta abordagem agrícola. A ideia  de que com adubos minerais é possível nutrir as plantas sem a presença dos animais “é  errada e promove desequilíbrios”, explica. Salienta também a relevância da proteção do  solo e a necessidade de ele ser perturbado o menos possível, para que se instale a microbiologia, e as bactérias e os fungos consigam fazer grande parte do trabalho que foi  iniciado com as máquinas, nos anos 60, com a Revolução Verde. 

Sobre o uso de pesticidas, que tem um forte impacto ambiental, André afirma que “são permitidos em agricultura biológica, mas são de origem natural”, e não sintética. A  horta da Quinta do Pisão, certificada em quinta orgânica, utiliza-os “no limite”, sublinha. A sua abordagem é sistémica. “Antes de intervir com qualquer tipo de pesticida, mesmo  sendo aprovado em agricultura biológica e de origem natural, vou criar condições no meu  sistema para que as pragas não se desenvolvam. O que é que eu preciso para isso? Antes de mais, de um ecossistema forte”. Depois, é fundamental que a planta seja verdadeiramente saudável – só assim é que terá “armas” para se proteger das pragas. 

“Quando não as estou a conseguir combater, e estou a ultrapassar o nível  económico de ataque (N.E.A) – nível a partir do qual eu estou a ter mais prejuízo do  que teria se fizesse um tratamento –, chega a altura de eu intervir. Se o ecossistema não resolve o assunto e as plantas, mesmo com as suas defesas, não conseguem derrubar a praga, aí sim pode haver, pontualmente, necessidade de intervir com pesticidas permitidos em agricultura biológica”. 

As pragas não são, no entanto, o único problema que a agricultura enfrenta. As  alterações climáticas são uma ameaça ambiental, social e económica. À TejoMag, André  afirma que, hoje em dia, “a nossa alimentação representa 30% dos gases com efeito de  estufa”. Quando se fala de alimentação, fala-se de todo o processo – desde a produção  dos alimentos, ao transporte, ao packaging e ao desperdício. Na agricultura regenerativa,  muda-se a forma como se produzem os alimentos e diminuem-se as distâncias entre a  produção e o consumo.

Na visita à horta da Quinta do Pisão, por exemplo, as pessoas apanham os seus legumes  diretamente do solo, com uma tesoura de poda, e pagam-nos no final. “É uma horta com um fim pedagógico muito forte”, define André, sublinhando que a maior parte dos adultos em ambiente urbano nunca apanhou um tomate de um tomateiro ou nunca puxou uma cenoura da terra. 

“A horta da Quinta do Pisão é um exemplo de que é possível e rentável produzir  legumes localmente. É uma das nossas bandeiras: faz sentido promover a produção  local de alimentos!” 

“Cascais pode produzir os seus próprios alimentos” e isto pode ser, de acordo com a  perspetiva do chefe de divisão do Terras de Cascais, uma medida de alavancagem  económica, de coesão social e de promoção do desenvolvimento ambiental do território.  A visão do futuro é estruturar, cada vez mais, a horta como uma montra, que prova que  faz sentido produzir vegetais no município. 

Lugar da Terra 

“Sem químicos, sem organismos geneticamente manipulados, sem trator, sem  lavrar, com o melhor de cada estação. Numa agricultura de abundância em que a  vida é fluxo e dinâmica”. 

Em Torres Vedras, há uma quinta onde o propósito é regenerar o solo através do  cultivo de legumes e frutas saudáveis e da criação de um ecossistema equilibrado e  harmonioso – é o Lugar da Terra. 

Tânia Carvalho é uma das responsáveis por este projeto que se dedica à agricultura  regenerativa. Define esta abordagem agrícola como sendo a fornecedora de “ferramentas  para que possamos cultivar de forma intensiva em pouco espaço, o que se traduz numa área menor para a produção de bastante alimento”. Isto reflete-se, por sua vez, num  consumo mais local, na diminuição da pegada carbónica, na conservação da água e no  aumento da biodiversidade. 

Quando pensa neste método, “abundância” é a palavra-chave: “no tipo de agricultura  que nós fazemos, estamos a falar de abundância de espécies e de uma biodiversidade  intensa”. Trata-se de um sistema, salienta, em que a única preocupação não é apenas o que querem produzir, mas também o foco em criar “riqueza” para todos os seres, de modo  a que todo o sistema agroecológico possa beneficiar.  

“Atualmente, estamos erradamente focados em retirar dos solos apenas as  plantas que nos interessam, eliminando todas as outras. Vamos ao extremo de  aplicar produtos químicos, que nos fazem mal, para fazer essas plantas vingarem.  Esta é uma maneira estranha (no mínimo) de alimentar o mundo, e assenta num  princípio de escassez que receia o abundante”. 

À TejoMag, fala da necessidade de mudança de mentalidade. Explica que o ser  humano é um agente de gestão do ecossistema. É, por sua vez, catalisador e pode retirar  dele o seu alimento, “muito mais rico nutricionalmente”, usufruindo do meio ambiente e  retribuindo com cuidado e gestão. A natureza, realça Tânia, “é fluxo e não uma conserva”. O ideal, defende, seria “observar como ela funciona e praticar esta abordagem de  acumulação, até que a abundância se tornasse um problema de luxo”. 

Embarcou na agroecologia em 2011, quando frequentou com o marido, Job – também ele criador do Lugar da Terra – um curso de agrofloresta dado por Ernst Gotsch em Portugal. Durante 15 dias, filmaram um documentário sobre o trabalho do agricultor  suíço, ao qual chamaram “Abundância/Abundance”. Esse momento foi o despertar para  a realidade da agricultura regenerativa e para a implementação de “agroecossistemas  cheios de vida”, como descreve Tânia. 

Em 2014, o casal comprou o terreno que deu espaço para nascer o Lugar da Terra, um  projeto onde se entende que “a agricultura é sobre resiliência, diversidade e abundância”.  Para além de fornecerem restaurantes e particulares, preparam cursos e workshops, disponibilizam consultoria personalizada e desenvolvem ferramentas para regeneração  em pequena escala. 

“Plantamos uma linha de Agrofloresta (plantas perenes) e quatro linhas de Market  Garden (plantas anuais) e repetimos este padrão a cada 6 metros”, o que resulta numa  grande diversidade de espécies de vários estratos e de tempos de crescimento opostos. 

“Como trabalhamos com árvores, conseguimos gerir a disponibilidade de luz e, através das podas, também a nutrição necessária para o solo. O nosso sistema está a começar a produzir os próprios fertilizantes (assim como faz a floresta) e estamos cada vez menos dependentes da água, uma vez que as árvores estão a moderar o  vento e a temperatura, deixando mais possibilidades para condensação”. 

Hortas da Rainha 

“A maior vantagem da agricultura regenerativa é a possibilidade de gerar um  impacto positivo sobre o território”. 

“Dar mais do que extrair” é o lema do Hortas da Rainha, uma quinta de agricultura  regenerativa em Torres Novas. Trata-se de um projeto onde se cuida do solo,  assim como de todos os elementos que o tornam rico, explica à TejoMag Denis Hickel,  um dos responsáveis. Aqui pensa-se nas questões sociais, culturais e económicas, que  estão por trás da agricultura regenerativa. “Nós não conseguimos praticar esta abordagem agrícola sem pensar no circuito alimentar, ou seja, na forma como a comida é produzida, transformada, distribuída e vendida”, afirma. 

Destaca a importância da criação de circuitos curtos, cujo objetivo é vender  diretamente à comunidade aquilo que se produz, sem que haja a intervenção de  intermediários – medida que ajuda na redução da pegada ecológica. A agricultura, elucida Denis, pode ter um papel fundamental no processo de mitigação ou combate das  alterações climáticas. 

“É necessário que a agricultura se adapte ou se inspire nas dinâmicas dos  ecossistemas, para criar dinâmicas próprias que fomentem a regeneração  ambiental”. 

Os seres vivos, de forma geral, desenvolvem-se num processo de coevolução com as  pastagens – dependem delas para sobreviver e vice-versa. A introdução dos animais, por  exemplo, é essencial no processo de ciclagem da matéria orgânica e tem como finalidade  a criação de um sistema de produção alimentar mais resiliente. “Em vez de utilizar um  trator para cortar a erva da quinta, as ovelhas andam pelo terreno a fazer isso e a melhorar  o solo”, ilustra. Não se trata, no entanto, de largar simplesmente os animais no terreno. Existe uma gestão por trás dessa prática, que tem por base o impacto que se pretende gerar.

“A agricultura convencional é um processo extrativo – extraem-se do solo nutrientes  que não são depois devolvidos. Não existe preocupação em se criar um equilíbrio”,  enfatiza Denis. No momento em que se colhe um determinado alimento, levam-se  também os nutrientes de que a planta necessitou para crescer. Quando se fala de agricultura regenerativa, a presença dos animais, a não mobilização dos solos, a sua cobertura e o uso abundante de composto refletem uma série de práticas que ajudam na nutrição do solo. São, portanto, fatores que “fornecem a energia para cultivar mais elementos”

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