“Posso apoiar um presidente hoje, mas não ações que vão prejudicar a minha vida”, diz a líder das mulheres indígenas em entrevista

Aos 42 anos, Watatakalu Yawalapiti é o rosto da mais nova geração de índios que se junta ao líder indígena Raoni Metuktire, conhecido internacionalmente desde os anos 80 por difundir pelo mundo a mensagem de luta pelos direitos dos indígenas e de preservação da Amazónia. Pertencente ao povo Yawalapiti, a líder das mulheres da Terra Indígena do Xingu, um território protegido situado no estado de Mato Grosso no Brasil, veio a Lisboa participar no primeiro evento da campanha mundial Woman For the Amazon, que arrancou na cidade. 

Rodeada de mulheres europeias, entre abraços e fotografias, Watatakalu falou no dia 11 de maio, no rooftop do hotel Mama Shelter, sobre o seu trabalho na coordenação da ATIX Mulher e no Movimento das Mulheres do Território do Xingu. A pioneira na emancipação do direito das mulheres na sua comunidade, filha do líder do seu povo, alia as novas tecnologias e a troca de experiências no outro lado do Atlântico à preservação dos seus costumes tradicionais. Falámos com a ativista em entrevista exclusiva.

As comunidades indígenas desentenderam-se durante os governos de Lula e Dilma. Foi aí que entrou o teu papel como defensora dos direitos das mulheres. O que fizeste para resolver os problemas da tua comunidade?

Por fazer parte de uma liderança feminina, as pessoas até podem dizer que mulheres são livres, mas isso não é verdade. Não é qualquer mulher que pode falar. Numa reunião de tomada de decisão pode ser ouvida paralelamente. Vinda de uma liderança senti-me na responsabilidade de avançar. Se uma mulher que não venha de uma linhagem de liderança tomar uma atitude não vai ser ouvida e talvez sofra retaliações. 

Os costumes do teu povo fazem da vossa comunidade machista?

Totalmente.

Quando é que percebeste que vivias numa realidade machista?

Desde muito cedo por ter passado por um casamento arranjado aos 15 anos. Casei-me por combinação de famílias e ninguém deu importância à minha vontade de não querer casar. Nesse momento que tive a certeza de que a mulher não tinha vontade, nem direito de viver a vida.

Essa decisão de não querer casar não foi influência do mundo exterior?

Não. Foi influência da própria cultura indígena. Porque em cada povo e em cada cultura do mundo existe ou existiu o machismo. Faz parte das sociedades.

Watatakalu no passado dia 11 de maio, no rooftop do hotel Mama Shelter.

As culturas têm de evoluir.

Sim, mas não são os homens que vão mudar isso. Somos nós mulheres que o temos de fazer. E naquele momento decidi mudar.

Os valores tradicionais dos vossos povos como a ligação à natureza, a simplicidade e o viver em comunidade são compatíveis como o modo como as cidades da Europa vivem?

São modos de vida diferentes. Nós dizemos que vocês vivem cada um no seu quadrado, cada um só pensa em si. Lá vivemos coletivamente. Podiam aprender com os povos indígenas e viver em comunidade. Aqui a vizinhança nem se deve conhecer. Podiam fazer coisas juntos.

E esses são valores que ainda preservam? Não estão a ficar mais individualistas?

Os povos indígenas ainda mantêm esse valor, mesmo aqueles que se misturaram com o homem branco. Falo da região da Bahia, Pernambuco… Faz parte da nossa cultura.

Com que valores foste criada e como recordas a tua infância?

Lembro-me muito do cheiro da manhã. De ir para junto do rio apanhar alguma coisa que chegou às margens… Sempre fui tratada como adulta desde muito cedo por ser a filha mais velha do meu pai e a neta mais velha do meu avô. Nasci numa família de líderes. Por isso é que nunca participava nas brincadeiras das crianças. Tinha de cuidar, estar ali sempre disposta à espera que alguém chamasse. Recebi ensinamentos de como me comportar e como cuidar do nosso povo. Quando falo em cuidar é cuidar das mulheres. 

As raparigas também são criadas para serem líderes. 

Sim, eles acham que nós temos de dar o exemplo. Tudo o que fizermos da nossa vida, outras pessoas também se vão sentir livres para fazer. Às vezes era a única criança no meio dos adultos e era tratada como adulta. A minha mãe também era uma cacique [líder] que carregou o nosso símbolo nos braços. 

Em criança só conhecias a realidade da tua comunidade?

O meu pai começou a trabalhar para a FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) em 1984. Fazia monitoramento territorial. Trabalhou como voluntário dois anos e foi contratado pelo governo. Naquela época, ele nem sabia o que isso era. Fazia as coisas, mas não sabia porque estava a ser pago. Foi nessa época que tive contacto com o não indígena. A minha família começou a receber pessoas de fora. E comecei a entender a vossa língua. O meu pai dizia que se eu quisesse um dia podia ser dentista. Cheguei a ajudar uma dentista no consultório na aldeia…

Não gostaste?

Gostava muito. Na infância fui duas vezes à cidade. Numa das viagens fui à ECO92, a minha primeira conferência sobre o movimento indígena. E acho que foi aí que começou a mudar essa vontade de querer ser dentista.

Começaste a querer ser ativista? 

Sim, porque o meu pai já era ativista do movimento indígena. Via-o a lutar pelos nossos direitos. Com o contacto não indígena veio a doença. Só 11 pessoas do meu povo sobreviveram. Estávamos num momento de recuperação da nossa população e eu sou dessa geração de crianças.

Em criança os teus familiares já te falavam nas alterações climáticas e na luta pelo território?

O meu pai era considerado doido porque já falava nisso. Ele dizia que o tempo ia enlouquecer: ‘O tempo vai se vingar de nós. Vai querer que nossos filhos e netos paguem pelo que está a acontecer no mundo hoje’. E as pessoas não levavam a sério nem entendiam. ‘A cultura não indígena não nos vai afetar porque aqui estamos seguros. Estamos rodeados pelos nossos alimentos saudáveis e o branco nunca vai entrar aqui’.

A chefe indígena é a pioneira na emancipação do direito das mulheres na sua comunidade.

Mas depois começaram a sentir os efeitos.

Chegaram imediatamente. É na floresta que sentimos. Aqui vocês têm ar condicionado e a água vem diretamente da torneira. 

Quando começaste a vivenciar as alterações climáticas?

Em 2000 nós já sentíamos a mudança de forma totalmente diferente. Apesar de já acompanhar a luta feita pelos meus pais e avós foi nesse ano que percebi que alguma coisa estava errada. Aquilo que o meu pai dizia devia ser levado com mais seriedade, porque o homem branco não ia fazer nada.

Como é que o teu pai teve a noção do fenómeno das alterações climáticas?

Ele participava no movimento indígena dentro do Xingu e comunicava com vários povos de outros estados do Brasil. Percebeu que o que acontecia dentro do nosso território era o que estava em discussão nesses sítios.

Que mudanças viste na natureza?

Alguns pássaros começaram a mudar os seus hábitos e as flores também apareciam em épocas erradas. A nossa plantação não nascia porque não chovia. Os insetos começaram a invadir a aldeia. O rio começou a ficar escuro, sujo e a secar. E principalmente porque o sol começou a aquecer muito mais. Foi piorando e, hoje, o perigo maior, é o fogo. Antes usávamos o fogo para os acampamentos e ele apagava-se sozinho. Hoje não podemos fazer isso. Estamos a mudar a nossa realidade. 

É um ponto sem retorno?

Há uma solução que não conta apenas com os povos indígenas. Na cidade vocês têm a vossa casa, mas precisam de fazer a sua manutenção e isso tem custos. Antes não precisávamos de fazer a manutenção da floresta porque ela cuidava-se sozinha. Há áreas que nem estão a ser usadas. Porque não reflorestá-las? Os países ricos precisam pagar para que haja pessoas que o façam.

“Para nós território é vida” afirma Watatakalu.

És da opinião de que os países estrangeiros financiam os vossos projetos e que essa será a melhor forma de reparação histórica. Mas sendo os países estrangeiros os principais clientes dos fazendeiros que destroem as vossas terras através de plantações de soja, milho… Uma verdadeira reparação histórica não seria a mudança dos hábitos de consumo?

Sim, se querem apoiar tem de ser de uma forma sustentável. Sabemos que todas as coisas produzidas no Brasil, que afetam os nossos territórios vêm para cá. Dizem que estão a produzir para colocar comida na mesa do brasileiro. Isso não é verdade. Toda a produção é escoada para fora do país. Essa responsabilidade também é dos empresários brasileiros. Não adianta falar em taxa de carbono. 

Durante o evento disseste que não acreditas que o governo brasileiro possa fazer alguma coisa para preservar as vossas terras. Mas não achas que foi importante a demarcação de terras que o Lula assinou no mês passado? Ou até a própria criação de um Ministério de Povos Indígenas?

Isso não nos foi dado pelo governo. Foi uma luta de anos. Temos as nossas representações. O Ministério dos Povos Indígenas é importante, mas qualquer ministério pode ser extinto de um momento para outro. Os territórios demarcados não chegam nem a metade do meu. São só para os gringos [estrangeiros] verem que foram demarcados. 

O que a demarcação significa para vocês? Que direitos vos dá?

Para nós território é vida. Pela lei dos não indígenas, as nossas terras são do nosso uso exclusivo. A Constituição Federal de 1988 funcionou muito bem durante a pandemia porque foi a única coisa que garantiu que os nossos territórios resistissem. Ao colocar um pedacinho do nosso pensamento num documento do homem branco, sabemos que no futuro vai funcionar para a futura geração.

O governo de Lula está a dar mais abertura para vos ouvir? Ele já esteve no governo anteriormente e vocês não o apoiaram. Houve recentemente uma mudança de atitude da vossa parte, por exemplo, pelo cacique Raoni ter subido a rampa do Planalto na tomada de posse.

Quando o presidente Lula ganhou pela primeira vez, o nosso povo votou nele, porque damos credibilidade às pessoas que querem fazer alguma coisa por nós. Mas não fomos escutados. Para fazeres alguma coisa em território indígena tens de escutar. Não é levar o teu pensamento aos indígenas. Esse é o primeiro erro maior do não indígena. É mandar e querer ser dono. Nós começamos a estabelecer diálogo no governo do Partido dos Trabalhadores com a Dilma. Lutámos contra a barragem hidroelétrica de Belo Monte. Afundou quilómetros de floresta, deixou várias comunidades fora das aldeias e criou uma cidade horrorosa perto do território. E o que trouxe? Prostituição, alcoolismo, todas as drogas possíveis e muitas pessoas. Trouxe pobreza porque o trabalho na obra acabou e aquelas famílias tiveram de lá ficar. Agora muitos deles são garimpeiros e invadem os territórios indígenas protegidos. Posso apoiar um presidente hoje, mas não ações que vão prejudicar a minha vida.

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