Dora Correia é administrativa de primeira, mãe de dois filhos e mora na “outra banda”, no concelho de Almada. Veio a Lisboa à manifestação pela habitação “Casa para Viver”.
Existe uma crise de habitação na vossa freguesia do Laranjeiro e Feijó?
Ah sim, existe.
Para todos ou mais para as famílias?
Eu tenho dois filhos na idade escolar. Existe uma crise de habitação também na nossa freguesia.
Mesmo sendo uma grande parte dos imóveis de cariz social público?
Sim, não se espera à primeira vista na nossa zona. Contudo as dificuldades de arrendamento a preços acessíveis são muitas. Uma grande parte são de fato apartamentos com apoios sociais, mas existem igualmente apartamentos de aluguer privado.
Existe um novo fluxo crescente de arrendatários no Laranjeiro?
Sim, existem muitas pessoas que foram para lá morar nos anos passados. Os proprietários viram-se obrigados a aumentar as rendas por terem dificuldades em manter os imóveis.
A Dora foi pressionada a sair do seu apartamento?
Eu morava com os meus filhos num T3 e fui pressionada a sair porque a renda mensal ia ser aumentada para 700 Euros.
Qual era o valor anterior?
Era de 300 Euros.
Um aumento desses durante a duração de um contrato de aluguer é legal?
O arrendamento passou do pai para o filho e, este, achou que devia aumentar a renda para esse valor de 700 Euros, como tinha já pessoas interessadas em arrendar o T3 por esse valor. Esse valor é comum nas freguesias à volta do Laranjeiro em Almada e, como há falta de casas, fui exposta a esta situação. Quem não pode, que se vá embora…
Como conseguiu resolver a situação?
Tive que procurar ajuda familiar, que me disponibilizou a casa de uma avó. Tinha falecido e estava vazia.
E alugou essa casa?
Sim. Estou a fazer obras e a viver com os meus filhos porque a casa estava em um estado deteriorado. Mas ao menos ainda estou a viver no Laranjeiro.
Então as medidas do pacote “Mais Habitação” do governo fazem sentido para si ?
As medidas para mim vêm bastante atrasadas. Até conseguir resolver a situação tive que me manter um mês a pagar uma renda elevada e pedir ajuda com o meu salário de administrativa na área de construção.
Qual é o valor do seu salário atual ?
É o salário mínimo nacional de 760 Euros.
Qual é, nesta situação, a sua opinião sobre a medida que visa apoiar as pessoas que tenham uma taxa de esforço com o arrendamento superior a 35% do seu salário até ao valor de 200 Euros por mês ?
Vai ajudar muito pouco. O governo propôs para famílias monoparentais valores mais baixos. Iria receber 30 Euros mensais.
Sendo assim existe uma certa exclusão dos pais separados
Sim. Tem de se trabalhar na mesma. Os meus filhos já vão e regressam sozinhos da escola. O importante é que almoçam na escola, o que é uma ajuda. Para além do apoio familiar que recebo. Bem, entre todos conseguimos sobreviver, mas passamos por dificuldades.
Qual é a sua opinião sobre o pacote de leis?
A lei para mim não passa de cosmética. Aquilo que nos estão a prometer ajudar não é o suficiente para o que está a fazer falta na realidade às famílias.
Porquê?
Os aumentos. O nosso salário é absorvido pela atual inflação. E o aumento dos combustíveis, o aumento dos produtos alimentares. A baixa do IVA para zero em alimentos essenciais é publicidade enganosa, porque se compararmos os preços da semana anterior, agora, após o anúncio do IVA a zero, alguns estabelecimentos até já aumentaram os preços.
Por que motivo veio à manifestação hoje? Qual é a sua esperança?
A de marcar presença. Eu pessoalmente penso que existe uma tendência para a situação económica ainda piorar. Vai haver muitas pessoas desalojadas, a viver na rua. Quem não tenha apoio familiar pode ter muitas dificuldades. Estamos a voltar ao cenário da crise que vivemos em Portugal em 2003/2004.
Ou seja, uma profunda recessão económica ?
Sim. Ainda mais grave provavelmente. Na altura os salários estavam igualmente demasiado baixos, mas não vivíamos uma situação de inflação como estamos a viver agora. Havia cortes nos subsídios de férias e de natal, mas não existiam aumentos substanciais nos preços.
Os aumentos de salários são poucos ?
Sim, aumentaram-nos o salário 30 Euros, o que não acompanha os aumentos de preços. Em resumo, não temos poder de compra. Eu tenho felizmente uma casa, mas não tenho ordenado para pagar essa inflação que estamos a viver.
Qual é a sua situação de arrendamento de momento?
Nestes seis meses a renda já aumentou 80 Euros, o que é relativo a uma casa comprada a cerca de 20 anos. O que me preocupa é toda essa inflação dos últimos meses.
O que é que diz aos seus filhos que estão neste momento a tocar tambores na marcha da manifestação?
Temos que economizar onde pudermos. Mesmo no essencial tem de se fazer contas. Já não há espaço para extravagâncias ocasionais, como fazíamos, uma vez por mês. Estou a tentar mentalizar-me de que isto não vai melhorar dentro em breve. Neste momento o que me ajuda é a alimentação escolar, que não é má e ajuda a poupar nas refeições.
Que idade tem a sua filha?
Tem 14 anos. Ela está a começar a compreender que temos por vezes de recorrer a certas ajudas. Comer em casa fica mais caro do que comer na escola. Temos de aproveitar os benefícios sociais que existem para famílias monoparentais.
Qual foi a origem da pressão no mercado de arrendamento no Laranjeiro?
Não tem a ver com o alojamento local, que existe mas não tem efeito. Vieram morar muitas famílias brasileiras na nossa zona porque ficamos perto das praias. Para eles a situação é mais facilitadora porque conseguem morar em casas sobrelotadas. Existem situações com dez pessoas em um T3. Se dividir 700 Euros por dez pessoas, já dá para pagar a renda.
Conhece situações dessas?
Sim. Chegam a estar pai, mãe e três filhos em um quarto. Eles são mais flexíveis. Para mim, isso não seria situação. Os senhorios aproveitam-se disso e aumentam as rendas.
Ou seja, então a crise da habitação está ligada à migração?
Daqui a quatro ou cinco anos os senhorios vão ter que reparar as casas porque assim sobrelotadas degradam mais. Contudo o ganho vai compensar esses custos.
Os últimos dados do INE apontam para um decréscimo de contratos de arrendamento, qual a razão que pensa estar na origem?
Muitos alugueres são ilegais. Feitos sem contratos. E os migrantes passam também por dificuldades. Em resumo, o projeto de lei é, para mim, publicidade enganosa.
O que diz em relação aos incentivos fiscais do novo programa?
Não me parece que muitos senhorios vão aderir a isso e vender ou arrendar a casa ao estado.
Por exemplo: eu tenho duas casas e vendo uma ao município e não pago então as mais-valias desta venda. Contudo, isso não significa que irei investir esse ganho em outra compra ou construção de um outro imóvel. Existe essa incerteza. Acho que, em geral, muitas das medidas anunciadas [são] pouco esclarecedoras.
Em que sentido?
Para mim parece-me publicidade enganosa de um governo sem grandes soluções de momento. Por isso é que estamos aqui hoje para manifestar o nosso descontentamento. Existe muita burocracia e pouca clarividência como as coisas vão melhorar.
Fabíola Xavier tem 43 anos, é enfermeira, está casada e tem dois filhos. Atualmente mora na Amadora.
Teve que sair de Lisboa por causa do aumento dos preços de arrendamento, pode-nos contar o que aconteceu?
Morávamos em Campo de Ourique. Pagávamos 650,60 Euros A nossa senhoria era impecável e, continua a ser impecável. Tivemos sempre uma boa relação. Disse-nos na altura que os valores da renda estavam incomportáveis tendo em conta os preços do mercado e, que queria subir a renda. Pelas contas que ela fez, baseadas nos anos que lá estivemos e nas subidas mensais, o valor iria para 1.050 Euros.
Isso foi em que altura?
Foi em 2021.
Morava em que tipo de apartamento e com quem?
Com os meus dois filhos e o meu marido, visto ser casada, num T2.
Foi uma situação complicada, pensou em sair logo?
Sim. Contudo conseguimos chegar a um acordo com ela. Passámos a pagar 850 Euros e comprometemo-nos a sair da casa no prazo de um ano. Entretanto comprámos uma casa na Amadora. Daí eu ainda me sentir uma privilegiada nesta situação da crise da habitação, visto ter tido uma alternativa de saída e não ter de ir morar para casas de família.
Que tamanho tinha o T2 em Campo de Ourique?
Não chegava a 60 metros quadrados.
Então, antes do aumento para 1.050 Euros, já pagavam o valor médio de 14 Euros por metro quadrado em 2021, que agora foi comunicado como valor médio de novos arrendamentos em Lisboa para o 4º trimestre de 2022 na cidade de Lisboa?
Sim, de certa forma. Contudo, durante sete anos paguei uma renda de 650 Euros mensais.
O aumento para 850 Euros, um aumento a rondar os 30%, ocorreu em 2021?
Sim. Exato. Mas de acordo com o mercado, o aumento estava adequado. Isso passou a ser incomportável para nós.
Sentem-se empurrados para a periferia de Lisboa como família?
Sim. Tivemos que mudar. De certo modo é a nova gentrificação e somos um exemplo disso.
Na vossa opinião o pacote “Mais Habitação” do governo vai resolver essas questões no futuro?
Não vai resolver nada. Mesmo que de alguma forma possa vir a ajudar a uma pequena fatia de famílias com os tais 50 Euros que serão atribuídos.
O valor de apoio a renda pode ir até aos 200 Euros mensais
Sim. Contudo penso que esse valor irá ser só atribuído a uma fatia mínima de pessoas. A medida só terá repercussões daqui a dois ou três anos, tendo em conta que a legislação em relação às casas devolutas prevê que têm de estar nesse estado durante dois anos, o governo tem de ir saber quem são os proprietários. Os proprietários terão de ser contactados.
Ou seja, na sua opinião a lei cria burocracia e é lenta em causar um efeito positivo na habitação acessível para famílias?
Sim. Igualmente, a possibilidade de incentivos fiscais ao alojamento local que passe a ser arrendamento de longa duração, vai tardar a ter efeitos. Existem muitas famílias que não têm casa agora.
Quanto tempo é que a sua família morou em Campo de Ourique?
Desde 1996, ou seja, no total, 8 anos.
E teve de ir temporariamente para a casa do seu pai na Amadora?
Não. Eu e o meu marido éramos da Amadora, mas quando nos juntamos, primeiro, fomos morar em Benfica, e depois, fomos para Campo de Ourique.
Que medidas é que ajudariam, na sua opinião, as famílias? Qual é a solução para a habitação?
Honestamente não sei. A situação está complicada para o governo.
Então têm feito sucessivamente o que podem?
Não. Existem, pelo menos em Lisboa, cerca de 6.000 apartamentos usados que são património público. Não sei em que condições estão, mas penso que parte deles podem ir muito bem para o arrendamento.
Os números de construção nova em Lisboa e em Portugal, em geral, têm diminuído na última década – segundo os dados do INE o número de imóveis licenciados em construções novas em Portugal tem diminuído de forma muito acentuada a partir de 2011 e, só começou de novo a recuperar a partir de 2017. De 1995 até 2004 foram licenciados quase um milhão de novos imóveis. Os números dos últimos dez anos apontam para um valor por volta das 150 mil construções novas.
Sem oferta, os preços sobem automaticamente. A solução passa por mais construção nova na área metropolitana de Lisboa?
Eu acho que construir mais não é a solução devido a existirem muitos prédios por reconstruir. Acho que, uma política focada na construção nova só ajuda o lóbi das empresas da construção em Portugal.
Então como conseguir rendas acessíveis à situação económica das famílias ?
A solução passa por aumentar a oferta, pondo casas já existentes no mercado do arrendamento.
Isso vai automaticamente baixar o valor das rendas, se todos arrendarem, por exemplo, por um valor de 20 Euros por m2?
Uma solução para combater os aumentos das rendas é por um teto ou um aumento fixo nos valores das rendas. Contudo, não compreendi ainda se isso é possível de acordo com a nossa constituição.
A proposta de Lei prevê um teto ligado aos valores da inflação para aumentos nos novos contratos. A atualização das rendas em 2023, para contratos habitacionais e comerciais indexados à inflação vai ser de 2 %, ou seja, irá ficar abaixo do valor atual da inflação
Sim. Contudo, todo o pacote baseia-se muito numa mudança no alojamento local. Existe muita especulação imobiliária ainda para resolver. Muitos imóveis estão fechados para arrendamento há mais de quatro anos.
Isso não irá mudar?
Não. Muitos fundos imobiliários sabem que as casas irão valorizar na mesma. Em dois anos foram alcançadas valorizações acima dos 30 a 40%. Em algumas zonas de Lisboa a valorização ainda foi mais alta. Isso não irá mudar com a nova lei da habitação.
Você disse no início que era feliz com a solução que encontrou…
Sim. Eu pude comprar um apartamento. O que fazem as pessoas que não podem comprar? Têm de voltar a viver com os filhos na casa dos pais? Ficam desalojadas? Existe muita incerteza.
E os seus filhos? Como foi para eles?
Ficaram um pouco tristes. Tinham amigos com os quais brincavam no parque em Campo de Ourique. Eu era a única que ia de carro para o trabalho. Fazíamos quase tudo a pé no bairro.
Os custos com a mobilidade aumentaram para si?
Sim, claro. Na Amadora é diferente. Para os meus filhos é muito menos apelativo. Tínhamos uma vida boa em Campo de Ourique. O nosso dia-a-dia não é comparável. Não estou falar da situação financeira em si. A qualidade de vida era outra. Dava para fazer quase tudo a pé. Ir ao supermercado, passar pelo parque e encontrar as pessoas que estão a fazer o mesmo, por exemplo. Conviver mais facilmente. Isso mudou para a minha família, mesmo estando agora de novo mais perto dos meus pais com os meus filhos.
Autora: Cristina Costa